São Paulo, sexta-feira, 2 de agosto de 1996
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NY convence com seus detalhes

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Chego a Nova York em pleno verão de 96, apartamento alugado de senhora velhinha em férias, com um livro de cozinha na mala para deixar de presente. É "Um Alfabeto para Gourmets", de M. F. K. Fisher. Mal entrei e lá estava ele na estante, em edições de capa mole e capa dura. Tanto pior.
Adoro esta cidade! É a mais bela que conheço, comovente até, e me perco feliz em seus detalhes. Desta vez quase entro em uma viagem diferente.
Alugar um apartamento onde alguém mora por 50 anos é procurar problemas. É como descobrir Tróia e suas sete camadas. O apartamento fala por meio de décadas de objetos e de tinta a óleo sobreposta e diz coisas interessantes. Retratos espalhados, muita louça, quadros, livros e mais livros.
E tem coisa para dar bandeira como livro? Ajudando a deslindar as camadas de Tróia, três volumes escritos pela própria dona da casa, Ellie Furmin. Aos 60 anos, aposentou-se por curiosidade, para ver como era viver sem trabalhar, e começou a escrever suas impressões de aposentadoria.
Era a hora desejada de se dedicar às casas, à cozinha, regar seus vasos, pescar, tomar chá com as amigas, aproveitar a rica vida cultural da cidade. Começou a se encantar com a cozinha. Passava no mercado e levava para casa o peixe de olho mais rutilante, o tempero mais exótico, o queijo para a happy hour com o marido.
Um ano depois, estava pelas tampas. O serviço de casa virou rotina, e ela, babá de netos e amigas doentes. Resolveu reagir. O marido se aposentara também, e ela virou a mesa. Eliminou o almoço, cada um que se virasse na rua ou na geladeira.
Dividiu as tarefas do jantar e das compras em um rodízio justo, e o infeliz que jamais percebera as dificuldades das compras, lavagem de pratos etc. caiu de boca no serviço. Em pouco tempo tornou-se um cozinheiro complicado, mas mais que razoável. A pequena biblioteca de cozinha mostra que ela sabia o que era bom e comia e cozinhava por prazer.
Em destaque, porque tem a antologia e várias obras separadas, está o "The Art of Eating", uma coletânea das obras de M. F. K. Fisher, a papisa literária da gastronomia americana. São livros de fazer a cabeça, de mudar a atitude diante da comida, histórias do prazer de comer e de cozinhar. Graças aos céus, sai em breve pela Companhia das Letras.
Ellie Furmin, a dona do apartamento, é perfeccionista ao extremo. Em um de seus pequenos jantares para amigos errou uma receita e esqueceu de fazer o arroz. Matriculou-se imediatamente no curso caríssimo de um "chef" francês do Four Seasons.
A apostila está aqui, toda anotada, e não vale grande coisa. Os mesmos caldos básicos de sempre e como cozinhar com vinho. Sobrou uma receita de quiche de espinafre que ela usa até hoje com sucesso.
Como livros de consulta e manuais tem o "The Joy of Cooking", de Irma e Marion Rombauer; e o "Master the Art of French Cooking", de Simona Beck e Julia Child, bíblia culinária e compêndio que "traduz" a cozinha francesa para os americanos. Bons, os dois.
Com as bases estruturadas, ela passa a brincar com comida étnica. "Il Talismano della Cucina", de Ada Boni, e quase tudo de comida indiana de Madhur Jaffrey. A comida indiana é influência inglesa, pois as dedicatórias são de amigas da Inglaterra, fiéis devotas dos bons curries coloniais.
Mrs. Furmin tem queda pela comida chinesa, coisa fácil de se perceber na sua cozinha, onde não faltam woks e steamers e molhos de soja, coisas que ajudam a comida a ficar pronta em cinco minutos.
Brilhando, pequeninos e inteligentes, estão os livros de Pomiane. Foram escritos nos anos 40 e já perderam o viço, mas anunciam com bravura, muita precocidade e inteligência a nouvelle cuisine.
Descobrimos coisas incríveis de almas gêmeas em hemisférios e mundos diferentes. Vidas paralelas, sonhos... Enfim... Ou largamos dos mistérios da vida cotidiana de uma americana ou nos lançamos, filha e netos, nas alegrias da grande maçã.

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