São Paulo, sábado, 3 de agosto de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Democracia judiciária

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Se a Constituição diz, no artigo 1º, que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, grafando a expressão com maiúsculas, está a afirmar claramente que todos os poderes da República (o Executivo, o Legislativo e o Judiciário) são sujeitos ao mesmo pré-requisito essencial: a legitimação democrática.
Legitimação democrática, porém, pode ser uma dessas expressões ocas, que contêm, na aparência de seriedade, só um ardiloso mecanismo de enganação destinado a iludir a sociedade. Legitimação democrática, levada a sério, consiste no exercício do poder de modo aceito ou escolhido por seu titular, o povo, atuado diretamente ou por seus representantes, como está dito no parágrafo único do mesmo artigo 1º constitucional.
Ora, o Poder Executivo e o Poder Legislativo, na União, nos Estados e nos municípios, são exercidos por pessoas escolhidas por meio do voto. Tem-se entendido no mundo civilizado que a escolha, pelo sufrágio livre e direto dos governantes, compreendendo também a mudança deles -em pleitos honestos- consiste na forma mais perfeita de legitimação democrática.
Contudo, o Poder Judiciário não passa pela mesma purificação. Sendo bom, competente e trabalhador, ou sendo mau, ignorante e preguiçoso, o juiz, depois de cumpridos os primeiros dois anos de carreira, torna-se estável, vitalício, inamovível, com irredutibilidade de vencimentos. O cargo passa a ser um domínio, do qual o titular não sai, do qual ninguém o tira, a menos que concorde com a medida, ressalvadas poucas exceções, raramente aplicadas.
Todas as considerações feitas até aqui nasceram de uma carta saída nesta semana, no "Painel do Leitor", pelo juiz cearense Vicente Eduardo Souza e Silva, de Fortaleza. Perguntou ele: "Por que o juiz brasileiro, do mais novo substituto ao mais elevado cardeal da Justiça, se transforma em vestal inacessível? Quando enfim a Justiça no Brasil vai-se despojar da herança colonial para se investir da transparência igualitária da evolução dos tempos?"
A Justiça, tomada como um todo, não tem legitimação democrática no sentido ensejado pela carta. Seus atores decidem os destinos do povo, por formas e modo em que não lhes interessa conhecerem os gostos, as tendências e a voz do dono do poder (o mesmo povo). Isso provoca, em muitos de seus praticantes, uma arrogância que tende a se agravar na medida em que o titular do cargo avança em promoções.
A auto-suficiência ensimesmada mais e mais o distancia dos jurisdicionados (eventualmente julgáveis pelo juiz) e mesmo de seus colegas mais jovens. Estes terminam, educados pela carreira, bajuladores daqueles cujo voto pode determinar seu progresso na ascensão profissional, através das promoções. Evidente que há exceções, felizmente numerosas, mas a constatação é necessária.
Não basta constatar. Cabe discutir as alternativas. A dos juízes eleitos, como existe nos Estados Unidos, além de ser estranha aos nossos costumes, é incompatível com as técnicas do direito escrito e em mutação constante. Os órgãos de controle, com membros eleitos, como se tem discutido, devem contribuir para o aperfeiçoamento judicial.
Todas as alternativas merecem consideração. Não devem destinar-se a limitar o Poder Judiciário, mas a inseri-lo no sistema clássico dos "checks and balances" da democracia, que nega o absolutismo. Incluem formas de verificação da ação dos juízes, aptas a fazê-los conhecidos, aferidos e criticados pela sociedade em geral, mas, como na carta transcrita, encontrando modos de dar transparência à magistratura e aos atos de seus componentes.

Texto Anterior: A Imprensa e o Judiciário
Próximo Texto: Diminuem filas no segundo dia de cobrança dos novos pedágios
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.