São Paulo, domingo, 4 de agosto de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Reale Jr. defende indenizar torturados

WILLIAM FRANÇA
DANIELA FALCÃO

WILLIAM FRANÇA; DANIELA FALCÃO
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos acha que Marighella era um 'líder' e Lamarca um 'rebelde'

O próximo passo é "a indenização de torturados", disse em entrevista à Folha o presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, Miguel Reale Jr.. Afirmou que pretende trabalhar para isso.
A idéia de Reale Jr. é a de que o governo e o Congresso cheguem a uma legislação que cancele a prescrição dos crimes de tortura -ou seja, não haveria mais o prazo máximo para que seja feita a denúncia por maus-tratos e tortura daqueles que estiveram sob tutela do Estado no regime militar (1964-1985).
*
Folha - O voto do relator do caso Marighella, Luís Francisco Carvalho Filho, traz um novo conceito para local assemelhado. Isso não abre brechas para novas interpretações?
Miguel Reale Jr. - O voto dele foi muito bem estruturado e fixa com mais clareza aquilo que a comissão vinha decidindo, ou seja, casos em que "dependências" não eram no sentido físico, de ter paredes, mas de a pessoa estar sob domínio. Nesse caso o dever da autoridade é prender, processar e, se for o caso, condenar, mas não fazer execução sumária.
Folha - Houve excesso nos casos Lamarca e Marighella?
Reale Jr. - Se eles tivessem sido presos, com certeza seriam condenados. Também seriam anistiados em agosto de 1979. As figuras e os fatos estariam perfeitamente cobertos pela anistia.
Folha - Fica claro que deve haver indenização para os dois?
Reale Jr. - Não, pois as circunstâncias é que estão sendo discutidas. Não se está discutindo a figura ou o que praticaram, mas se havia uma situação de domínio por parte da repressão policial. Precisamos saber se houve abuso ou não do direito de repressão.
Folha - Quem foi Marighella?
Reale Jr. - Um militante do Partido Comunista que teve papel importante na Constituinte de 1946. Pelo que sei, era um homem preparado, com liderança, cultura, com paixão pelos seus ideais.
Folha - E quem foi Lamarca?
Reale Jr. - Um rebelde, antes de tudo. Um homem de ação, mais do que de pensamento, que depôs sua impetuosidade numa idéia, que praticou violências em nome dela. Deve ser reconhecido como um homem de coragem.
Folha - Como vê as manifestações de militares no caso Lamarca?
Reale Jr. - Eles estão insistindo no aspecto de Lamarca ter sido um desertor. A história política brasileira é palmilhada por deserções, de pessoas que depois vieram a ter um papel importantíssimo na vida política do país. As coisas estão sendo vistas com muita paixão e pouca visão histórica.
Folha - A lei 9.140/95 foi escrita para deixar de lado casos polêmicos como os de Lamarca e Marighella, mas eles terminaram sendo incluídos. O que aconteceu?
Reale Jr. - No caso Lamarca, havia provas que estavam ocultas e que chegaram. Acredito que a experiência da comissão demonstrou o quanto versões oficiais estavam sendo desfeitas pelos fatos reais trazidos dos autos. Nós não imaginávamos que tantos casos, que tinham sido oficialmente apresentados como tiroteio, seriam casos em que caberia responsabilidade do Estado por abuso.
Folha - Alguém foi enganado quando se redigiu a lei?
Reale Jr. - Essa expressão é muito forte! Ninguém está tapeando ninguém! Só está se avaliando com justiça e imparcialidade os casos. A lei tem significado preciso. Não há subterfúgio ou expediente imoral em sua interpretação.
Folha - Após o encerramento dos trabalhos da comissão, famílias que não tenham sido contempladas podem recorrer à Justiça pedindo igualdade de tratamento?
Reale Jr. - Não. A lei é clara, fixou prazos e não há como ir contra o que está estabelecido aí.
Folha - O sr. acha que os livros didáticos devem recontar a história do período do regime militar?
Reale Jr. - Sem dúvida nenhuma, esses dados são significativos de referência para as novas gerações. O papel da comissão é pedagógico, de demonstração do valor da cidadania e do respeito aos direitos das pessoas independente das suas convicções. Também é de mostrar que há limites para atuação do Estado. Seria interessante constar que, nesse período (1964-1979) houve uma violência.
Folha - Quais são os limites para essa comissão?
Reale Jr. - Acho que ela já mexeu na história. Já mostrou os riscos de um sistema que garantia a impunidade, que levava muitas vezes à prática do abuso. Fica uma lição para todos no Brasil, especialmente para as novas gerações, de quanto é perigosa a ditadura e um sistema de exceção, que gera violência e arbitrariedades.
Folha - Quando a comissão vai encerrar os trabalhos?
Reale Jr. - Ainda restam 127 casos para análise. Até novembro, esse trabalho está terminado.
Folha - A comissão também tem a tarefa de propor meios para localizar corpos de desaparecidos. Até agora, muito pouco disso foi feito. Faltam verbas?
Reale Jr. - As verbas estão sendo estabelecidas para o Orçamento de 1997. Mas faltam informações consistentes para o trabalho dos experts localizarem corpos.
Folha - O Estado brasileiro concedeu menos indenizações do que Argentina e Chile. Não há um débito com os chamados "reprimidos vivos", aqueles que foram torturados, mas sobreviveram?
Reale Jr. - Espero que não. O papel da comissão é o de estabelecer um ponto final nessa matéria. Na verdade, essa questão da indenização de torturados precisa ser objeto de lei. É um próximo passo.
Folha - Como seria possível propor isso, após tantos anos?
Reale Jr. - A responsabilidade do Estado é patente nessas hipóteses. Não precisa de lei para estabelecer responsabilidades. Mas, para aqueles que foram torturados na ditadura, essas ações de responsabilidade estariam prescritas. Precisaria de uma lei que autorizasse e reinserisse a reparação dos danos.
Folha - O sr. é a favor dessa reparação?
Reale Jr. - Posteriormente, sou. Acho que esses casos têm de ser examinados.

Texto Anterior: Pele favoreceu escolha de Pitta
Próximo Texto: Entidade derruba versão sobre morte
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.