São Paulo, domingo, 4 de agosto de 1996
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O possível e a novidade

ALFREDO ANTONIO FERNANDES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há dois traços que me encantam em Piaget: o primeiro é o que diz respeito à descoberta da singularidade da criança. Melhor, da criança na idade chamada pré-escolar. Melhor ainda: da criança no estádio sensório-motor, isto é, na situação de um sujeito não-consciente, autista, que se ignora a si mesmo ou, se me dão licença, na situação de um não-sujeito. Nem adulto em miniatura nem potencial a desenvolver: a criança é-nos apresentada como pessoa que tem, e por isso mesmo deve tê-lo do ponto de vista do direito, estatuto ontológico e epistemológico próprio.
Não tenho dúvida de que o progressivo reconhecimento legal e social do direito da criança a brincar, a fabular, a inventar o seu tempo, o seu espaço etc., a errar, numa palavra, a ter sua própria cidadania é um título, entre outros, também dessa profunda e longa viravolta que Piaget praticou.
O outro aspecto que me atrai em Piaget é o que diz respeito à abertura do novo e à abertura ao novo, sem que isso implique a gestação de qualquer ideologia da novidade. Recebe o novo como desafio; não o amaldiçoa. As situações novas, geradoras de desequilíbrio, animam-no. Gosta de desarrumar e é em meio à desarrumação que costuma trabalhar.
A provocação é constante. O desafio a pares e a não-pares é metódico e insaciável; trata-se de um "modus operandi" preciso, que persegue um objetivo definido: abrir questões fechadas, resolver questões abertas. Todo o tempo, o convite à participação no atelier da investigação permanente. Presente, a disposição para a re-visão e para novas maneiras de dizer.
Piaget é curioso. Um grande curioso. Ele tem curiosidade, esse enorme desejo de desvendar. Nada lhe escapa à agulha fina de ponta afiada. Interessa-se pelo diferente, pelo outro, pelo que foge à Gramática, pelo que rompe com o padrão, enfim, pelo "erro".
Seus textos, marcados pelas transformações, não constituem uma "oeuvre", uma obra com linhas definidas. Escritos tensos, intricados, quase sempre lembram um cipoal que afugenta o leitor apressado. Noções como as de adaptação, assimilação, acomodação, equilíbrio, equilibração, especialmente as duas últimas, foram construídas ao longo de toda a sua vida. Mais que assimilador, ele é, em sentido fortemente piagetiano, um autêntico acomodador. Pronto a receber o novo, mas, sobretudo, disposto a integrá-lo na teia que sem cessar constrói.
Mais que um refutador, Piaget é um rebatedor. Refutador, na acepção que Ezequiel de Olaso cunhou, é aquele que não mostra as cartas próprias; o que quer é negar o outro, pois é o outro que está em questão. Rebatedor, mostrando suas cartas, Piaget opera não no sentido de destruir a teoria rival, mas no de oferecer-lhe soluções alternativas e até novos procedimentos de investigação.
Face às novas tecnologias e aos avanços intelectuais que elas favoreceram, a curiosidade de Piaget não teve limites; foi incessante. Podemos imaginar que hoje, frente às vertiginosas inovações da ciência e da tecnologia, ele não seria apenas um grande entusiasta das possibilidades abertas por esse fascinante universo de novidades. A seu turno, como o fez em vida, nelas encontraria linguagens com que produziria novos conceitos teóricos ou a matéria-prima sobre a qual se debruçaria na tentativa de decifração.
Há quem diga que as mais notáveis formulações de Piaget não resistem ao chamado impacto das novas tecnologias, como não teriam resistido às mais recentes descobertas ou invenções das ciências da vida. Algo semelhante ao que teria ocorrido com Descartes, pelo fato de ter ele limitado a edificação da ciência ao procedimento matemático; ou com Kant, entre outros exemplos, por ter ele concebido o tempo a reboque da noção que Newton fez deste. Ora, da mesma forma como se pode mostrar a precipitação dessas leituras, bastando para isso proceder-se um exame acurado dos textos e dos conceitos em questão, pode-se também deslindar as analogias, as metáforas e os paradigmas construídos por Piaget com o fito de se estabelecer a originalidade de seu trabalho, independentemente dos exemplos que escolheu.
Piaget é um autor recente, geralmente estudado por profissionais da pedagogia ou da psicologia, que dele se servem mais como instrumento de trabalho do que como matéria de investigação propriamente dita. Recentíssimos são os trabalhos de historiadores ou biógrafos como Fernando Vidal ("Piaget Before Piaget") ou Jean-Jacques Ducret ("Jean Piaget - Biographie et Parcours Intellectuel"). Esperamos novidades!

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