São Paulo, domingo, 4 de agosto de 1996
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O computador e a criança

LINO DE MACEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que diria Piaget do impacto de novas tecnologias, como o computador e a televisão, sobre o desenvolvimento da criança? Em que medida essas novas tecnologias influenciam os estágios de desenvolvimento da criança, descritos por ele?
Apoiado em Piaget, farei três comentários a respeito dessa questão.
Primeiro, o computador e a televisão são tecnologias continuamente aperfeiçoadas. Em outras palavras, o computador, como a vida, é um sistema de regulações, que implica equilibrações majorantes. Explico: o uso de um programa de computador -um processador de textos, por exemplo- resolve, nos limites de sua versão, uma série de problemas. Com ele podemos escrever, fazer correções, colar ou copiar textos etc. Além disso, seu uso, pouco a pouco, coloca questões ou "pede" tarefas que o programa atual não resolve e que, por isso, requer um aprofundamento ou ampliação de seu "pacote" de operações.
Como resultado, temos toda uma série de programas, cada vez melhores. A melhoria constante dos programas de computador, em função do uso e das exigências que fazemos deles, ilustra um princípio que Piaget reivindicava para a própria vida. A vida, se não somos impedidos pela doença, pela injustiça social ou pela miséria, será sempre para melhor; isto é, exigirá contínuos aperfeiçoamentos em torno daquilo que caracteriza sua função ou razão de ser. Não deveria ser assim, também, na escola? Professor e alunos fazem tarefas que, ao mesmo tempo que respondem à matéria do "dia", criam dúvidas, geram questões ou necessidades de pesquisa, que só um trabalho seguinte poderá dar conta.
O segundo comentário, sobre o "valor piagetiano" do computador como nova tecnologia, decorre do primeiro.
O uso do computador expressa-se em um contexto de contínua interação. Nesse sentido, o computador não é apenas um instrumento que prolonga nossos poderes de comunicação ou de processar informações: realiza operações e interpreta informações de modo correspondente ao nosso. Com isso, possibilita uma qualidade de interação, que tem valor de desenvolvimento.
Piaget chamava essa qualidade dialética de interação de "formas de interdependência". Trata-se de uma interação em que os elementos devem funcionar, ao mesmo tempo, como "todo" e como "parte", ou seja, devem atuar de forma interdependente. Como todo, porque são "responsáveis" por suas decisões, e como parte, porque sua ação depende da ação de um outro. Não é assim, entre nós e um programa de computador? Não deveria ser assim, também, na escola?
Passo, agora, ao último comentário.
Dado que as crianças estão aprendendo mais e com maior rapidez, em que medida essas novas tecnologias influenciam os estágios de desenvolvimento da criança descritos por Piaget?
Comecemos por analisar a idéia de estágios de desenvolvimento, pois esse ponto, ainda que central na obra desse autor, é muito criticado e combatido. Piaget, em "Introdução à Epistemologia Genética", defende que essa epistemologia deveria considerar sempre duas referências: a do sujeito que aprende e a do objeto que é conhecido. Para a primeira, propunha o método psicogenético, e para a segunda, o método histórico-crítico.
O método psicogenético é uma forma de analisar a construção do conhecimento pelos níveis sucessivos das estruturas utilizadas pela criança nesse processo. Supõe uma visão de que conhecer não é uma questão de "tudo ou nada", ou seja, de certo ou errado, de saber ou não-saber. Ao contrário, conhecer supõe o "colorido" de suas nuances, de "erros construtivos", pois cometido por todas as crianças em um certo nível de aquisição de uma certa noção ou operação. Por isso, o problema na teoria de Piaget não é o de uma criança (estimulada, por exemplo, por suas interações com programas de computador) desenvolver-se mais, ou menos, rapidamente. O problema seria o de se provar que um certo nível de desenvolvimento não é necessário ou que, em certa cultura, por exemplo, apresenta-se de forma inversa ao proposto por Piaget.
O método psicogenético, ou seja, a consideração dos níveis de desenvolvimento da criança, é cada vez mais atual e importante. A Declaração dos Direitos Humanos, pelo seu artigo 21, tornou a educação fundamental um direito da criança e um dever da família e do Estado. Na prática, contudo, muitas crianças que vão à escola não querem, nem conseguem, aprender, da forma como usualmente ensinamos. A superação disso supõe a consideração psicopedagógica ou construtivista do processo de ensinar. Supõe considerar as características psicológicas, sociológicas, antropológicas etc. da criança. Supõe levar em conta seus recursos cognitivos, isto é, seu nível de desenvolvimento.
O método histórico-crítico seria a referência relativa ao objetivo a ser conhecido. É histórico, pois todo conhecimento científico supõe uma construção sociocultural; supõe o saber acumulado pela humanidade sobre um objeto de conhecimento. É crítico, pois o cientista deve se posicionar com relação a esse conhecimento. Deve optar ou defender o recorte desse conhecimento, que servirá de marco de referência para ele. A epistemologia genética analisa, pois, esse encontro entre o "matemático" -a criança e seus níveis de desenvolvimento sobre uma noção ou operação aritmética, por exemplo- e a matemática -o sistema teórico que formula, ainda que provisoriamente, uma posição científica sobre um dado conceito.
O método histórico-crítico, ou seja, uma tomada de posição sobre o objeto de conhecimento é, igualmente, cada vez mais atual e importante. Temos muitas versões científicas, ou não, sobre um dado problema. A escola, por exemplo, quando adota um livro didático para apoiar o ensino de matemática, conscientemente, ou não, aceita a visão que o autor do livro tem sobre essa matéria, sobre criança, sobre pedagogia etc. É muito importante, pois, termos uma visão crítica dos objetos e materiais de ensino que utilizamos como referência para nosso trabalho na escola. Essas considerações, obviamente, aplicam-se ao uso do computador na sala de aula. É importante selecionar os programas (jogos, cursos de línguas, problemas matemáticos, exercícios, processador de textos, correio eletrônico etc.), avaliar sua qualidade pedagógica, julgar a concepção que, implícita ou explicitamente, têm de criança, de ciências. O importante não é o computador, mas o que ele favorece ou otimiza, pela qualidade de sua interação, na criança. E para essa análise, ou tomada de decisões, a teoria de Piaget pode muito nos ajudar.

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