São Paulo, domingo, 4 de agosto de 1996 |
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Caminhos da ficção de Sabino
RUI MOURÃO
Fernando Sabino (cuja "Obra Reunida" em três volumes está sendo lançada pela Nova Aguilar) partiu para a dramatização completa da narrativa, nas águas desse dublê de ficcionista e repórter que foi Hemingway, abordando a realidade por meio da observação do comportamento objetivo dos personagens, no melhor estilo behaviorista. A caracterização do autor implícito, a "persona" que conduz a história, não é resultado de nenhuma estratégia a partir de uma visão subjetiva. Eduardo Marciano recolhe-se para dentro dos seus limites apenas na hora do registro de emoções de curta duração, decorrentes de vicissitudes do seu viver imediato. Em total desinteresse pelo descritivo puro, o texto se apóia preferentemente no diálogo -numeroso, vivo, sonoro- e nos gestos, nos movimentos, nas atitudes das pessoas. Não é tentada nenhuma pesquisa que radicalize uma maior procura de concretude ou visualidade. O que se vê é a espontaneidade de frases sem muita coordenada ou subordinada, como se de meras anotações se tratasse. O vocabulário, de uso cotidiano corrente, acentua o toque leve da crônica. O leitor fica com a impressão de que uma cena da vida real está sendo representada à sua frente. O corpo geral do romance vai sendo montado por justaposição a seco, quer dizer, sem comentário, dos diversos segmentos. Os quadros de feição cinematográfica que se somam, se superpõem -que acabam ganhando nova significação ao se contraporem com os que continuarão a seguir aparecendo- criam um estado geral de dinamismo que não se interrompe em momento algum. E é nesse ritmo que se desenvolve o processo de ampliação do sentido cultural do relato, à medida que os diálogos passam a incorporar diferentes valores, transferem-se a outros planos e, com eles, os personagens conhecidos crescem e se transformam ou novos personagens se apresentam. Ao final, sempre seguindo o curso de uma visão humorística e, quando não apenas pitoresca, desmistificadora da realidade, tem-se a construção da personalidade do escritor Eduardo Marciano, a apresentação do seu grupo intelectual e a revelação da Belo Horizonte literatizada dos anos 40, período em que o Ocidente enfrentava os tormentos da guerra contra o Eixo. A experiência de "O Encontro Marcado" determinaria a nova embocadura do cronista, por essa época já bem situado na grande imprensa carioca. O texto literariamente muito construído de "Cidade Vazia" ganha a fluidez e naturalidade dos trabalhos que depois serão reunidos em "O Homem Nu". Continuará, nas páginas da revista "Manchete" ou do "Jornal do Brasil", o olhar aberto para fora, o espetáculo do mundo sendo observado através do humor, o sarcasmo ou o lirismo. A menor dimensão das matérias redundam em maior força incisiva. O autor parece querer demonstrar que não há necessidade de estar conduzindo o leitor pela mão e busca colocá-lo diretamente em contato com o essencial. Com o tempo, evoluirá para uma relativa interiorização da linguagem, para um clima de certa reflexão poética. Passa em consequência a ser comentada a estupefação com o espetáculo humano e são feitas indagações de ordem metafísica. Nessas oportunidades, por vezes o diálogo acaba sendo abandonado, mas ninguém errará ao dizer que Fernando Sabino é o mais fanático partidário do diálogo na crônica brasileira. Esse sinal de intenção comunicadora, por isso mesmo, não pode ser desconsiderado. A mesma disposição se manifesta cá fora. E aqui cabe, talvez, uma referência ao risco que permanentemente estão a correr aqueles que têm a obrigação de diariamente se porem em contato com o maior número de pessoas por meio da criação literária oferecida pelos meios de comunicação de massa. Apela-se muito para o anedótico, de sorte que, no momento em que as suas produções são submetidas ao escrutínio da avaliação estética, elas se apresentam desmerecidas. O cronista de "A Inglesa Deslumbrada", ao cair nessa tentação, procura em parte se salvar pelo lado do desempenho técnico, virtude que nele sempre deve ser considerada. Depois de dar a impressão durante 23 anos de haver abandonado a ficção, Fernando Sabino retornaria ao gênero com "O Grande Mentecapto", promessa que, de tanto repetida, começava a não convencer mais ninguém. Nesse livro, que corresponde à radical mudança de perspectiva da sua arte de narrar, o autor resolve nos contar as venturas e desventuras de conhecido tipo popular que habitou Belo Horizonte, Geraldo Boi, doido manso que se pavoneava de ser amigo de autoridades, carregava permanentemente livros ou jornais debaixo do braço, chegou a cursar direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e abordava as pessoas pelas ruas, fazendo sinal com os dedos para indicar dinheiro e falando com voz empostada de tribuno em hora de folga: "Vamos colaborar?". Com muita competência, o romancista buscou se beneficiar do modelo da narrativa picaresca espanhola, o que de saída confere à obra a dimensão de paródia. Em cada capítulo, anunciado com a discursiva titulação muito circunstanciada própria do gênero, é contado um episódio das peripécias do personagem que se desloca espacialmente e é suporte para a revelação de costumes de camadas sociais sempre diversificadas. Como bom pícaro, Geraldo Viramundo, assim denominado no livro, gera invariavelmente muita perplexidade e muita ação à sua volta, mas não evolui como caráter, podendo conservar o nível estabilizado da sua loucura, que só afeta as pessoas ao obrigá-las a procedimentos inusitados. Com eficiência, vão sendo explorados o tom popularesco, a ironia permanente, a comédia, a chalaça e o grotesco. São revelados dotes imaginativos que "O Encontro Marcado", pela sua densidade memorialística, não chegara a comprovar. Entre os demais livros de ficção de Fernando Sabino, é inevitável que seja referido, pela turbulência que causou, ao ser publicado, "Zélia, uma Paixão", romance escrito a partir de depoimentos pessoais da ex-ministra da Economia do governo Collor. No meu entender, os recursos de expressão de um escritor, desenvolvidos à custa da sociedade, não podem ser usados para glamourização de quem se converteu em instrumento opressor de uma população inteira. Como entretanto historicamente a ética não tem sido pressuposto obrigatório das boas criações do espírito, restrinjo-me a indagar sobre os possíveis critérios intrínsecos de sustentação da obra. Ora, a figura que o autor pretendeu aproximar de Madame Bovary não chega nem sequer a se esboçar, e a história, por falta de um mínimo de estruturação -pois a linguagem indireta nem sequer chegou a se definir- pouco além de relatório na verdade é. Texto Anterior: Seis pontos do pensamento piagetiano Próximo Texto: O dia-a-dia das telenovelas Índice |
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