São Paulo, domingo, 4 de agosto de 1996
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Caminhos da ficção de Sabino

RUI MOURÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Depois de haver impressionado Mário de Andrade com surpreendente maturidade literária aos 17 anos, Fernando Sabino se manteve fiel à carreira de menino prodígio, tornando-se muito cedo autor publicado. Mas o ponto realmente elevado da sua atividade criadora seria alcançado na fase dos 30 anos, com a publicação do romance "O Encontro Marcado". Desde as primeiras tentativas no conto, nunca deixara de se exercitar também na prática do jornalismo, fato que deve ser posto em destaque, pois por meio da combinação das duas experiências é que acabaria descobrindo o seu caminho.
Fernando Sabino (cuja "Obra Reunida" em três volumes está sendo lançada pela Nova Aguilar) partiu para a dramatização completa da narrativa, nas águas desse dublê de ficcionista e repórter que foi Hemingway, abordando a realidade por meio da observação do comportamento objetivo dos personagens, no melhor estilo behaviorista.
A caracterização do autor implícito, a "persona" que conduz a história, não é resultado de nenhuma estratégia a partir de uma visão subjetiva. Eduardo Marciano recolhe-se para dentro dos seus limites apenas na hora do registro de emoções de curta duração, decorrentes de vicissitudes do seu viver imediato. Em total desinteresse pelo descritivo puro, o texto se apóia preferentemente no diálogo -numeroso, vivo, sonoro- e nos gestos, nos movimentos, nas atitudes das pessoas.
Não é tentada nenhuma pesquisa que radicalize uma maior procura de concretude ou visualidade. O que se vê é a espontaneidade de frases sem muita coordenada ou subordinada, como se de meras anotações se tratasse. O vocabulário, de uso cotidiano corrente, acentua o toque leve da crônica. O leitor fica com a impressão de que uma cena da vida real está sendo representada à sua frente.
O corpo geral do romance vai sendo montado por justaposição a seco, quer dizer, sem comentário, dos diversos segmentos. Os quadros de feição cinematográfica que se somam, se superpõem -que acabam ganhando nova significação ao se contraporem com os que continuarão a seguir aparecendo- criam um estado geral de dinamismo que não se interrompe em momento algum.
E é nesse ritmo que se desenvolve o processo de ampliação do sentido cultural do relato, à medida que os diálogos passam a incorporar diferentes valores, transferem-se a outros planos e, com eles, os personagens conhecidos crescem e se transformam ou novos personagens se apresentam.
Ao final, sempre seguindo o curso de uma visão humorística e, quando não apenas pitoresca, desmistificadora da realidade, tem-se a construção da personalidade do escritor Eduardo Marciano, a apresentação do seu grupo intelectual e a revelação da Belo Horizonte literatizada dos anos 40, período em que o Ocidente enfrentava os tormentos da guerra contra o Eixo.
A experiência de "O Encontro Marcado" determinaria a nova embocadura do cronista, por essa época já bem situado na grande imprensa carioca. O texto literariamente muito construído de "Cidade Vazia" ganha a fluidez e naturalidade dos trabalhos que depois serão reunidos em "O Homem Nu". Continuará, nas páginas da revista "Manchete" ou do "Jornal do Brasil", o olhar aberto para fora, o espetáculo do mundo sendo observado através do humor, o sarcasmo ou o lirismo. A menor dimensão das matérias redundam em maior força incisiva.
O autor parece querer demonstrar que não há necessidade de estar conduzindo o leitor pela mão e busca colocá-lo diretamente em contato com o essencial. Com o tempo, evoluirá para uma relativa interiorização da linguagem, para um clima de certa reflexão poética.
Passa em consequência a ser comentada a estupefação com o espetáculo humano e são feitas indagações de ordem metafísica. Nessas oportunidades, por vezes o diálogo acaba sendo abandonado, mas ninguém errará ao dizer que Fernando Sabino é o mais fanático partidário do diálogo na crônica brasileira. Esse sinal de intenção comunicadora, por isso mesmo, não pode ser desconsiderado.
A mesma disposição se manifesta cá fora. E aqui cabe, talvez, uma referência ao risco que permanentemente estão a correr aqueles que têm a obrigação de diariamente se porem em contato com o maior número de pessoas por meio da criação literária oferecida pelos meios de comunicação de massa.
Apela-se muito para o anedótico, de sorte que, no momento em que as suas produções são submetidas ao escrutínio da avaliação estética, elas se apresentam desmerecidas.
O cronista de "A Inglesa Deslumbrada", ao cair nessa tentação, procura em parte se salvar pelo lado do desempenho técnico, virtude que nele sempre deve ser considerada.
Depois de dar a impressão durante 23 anos de haver abandonado a ficção, Fernando Sabino retornaria ao gênero com "O Grande Mentecapto", promessa que, de tanto repetida, começava a não convencer mais ninguém.
Nesse livro, que corresponde à radical mudança de perspectiva da sua arte de narrar, o autor resolve nos contar as venturas e desventuras de conhecido tipo popular que habitou Belo Horizonte, Geraldo Boi, doido manso que se pavoneava de ser amigo de autoridades, carregava permanentemente livros ou jornais debaixo do braço, chegou a cursar direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e abordava as pessoas pelas ruas, fazendo sinal com os dedos para indicar dinheiro e falando com voz empostada de tribuno em hora de folga: "Vamos colaborar?".
Com muita competência, o romancista buscou se beneficiar do modelo da narrativa picaresca espanhola, o que de saída confere à obra a dimensão de paródia. Em cada capítulo, anunciado com a discursiva titulação muito circunstanciada própria do gênero, é contado um episódio das peripécias do personagem que se desloca espacialmente e é suporte para a revelação de costumes de camadas sociais sempre diversificadas.
Como bom pícaro, Geraldo Viramundo, assim denominado no livro, gera invariavelmente muita perplexidade e muita ação à sua volta, mas não evolui como caráter, podendo conservar o nível estabilizado da sua loucura, que só afeta as pessoas ao obrigá-las a procedimentos inusitados.
Com eficiência, vão sendo explorados o tom popularesco, a ironia permanente, a comédia, a chalaça e o grotesco. São revelados dotes imaginativos que "O Encontro Marcado", pela sua densidade memorialística, não chegara a comprovar.
Entre os demais livros de ficção de Fernando Sabino, é inevitável que seja referido, pela turbulência que causou, ao ser publicado, "Zélia, uma Paixão", romance escrito a partir de depoimentos pessoais da ex-ministra da Economia do governo Collor.
No meu entender, os recursos de expressão de um escritor, desenvolvidos à custa da sociedade, não podem ser usados para glamourização de quem se converteu em instrumento opressor de uma população inteira. Como entretanto historicamente a ética não tem sido pressuposto obrigatório das boas criações do espírito, restrinjo-me a indagar sobre os possíveis critérios intrínsecos de sustentação da obra.
Ora, a figura que o autor pretendeu aproximar de Madame Bovary não chega nem sequer a se esboçar, e a história, por falta de um mínimo de estruturação -pois a linguagem indireta nem sequer chegou a se definir- pouco além de relatório na verdade é.

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