São Paulo, domingo, 4 de agosto de 1996
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Os EUA adotam projeto "Grande Brasil"

GILBERTO DIMENSTEIN

Uma menina de 11 anos na Califórnia estava convencida de que só tinha uma maneira para se livrar da professora: assassinato.
Durante dois meses, ela planejou os detalhes para matar Sandra Haile e arregimentou três aliados em sua sala.
No dia 27 de maio passado, o grupo executou o plano. Distraíram a professora e injetaram veneno de rato em sua garrafa de Gatorade antes do almoço; sabiam que todos os dias, invariavelmente, ela tomava o refrigerante.
Um mês depois, a menina confessou sem demonstrar remorso e acabou condenada a cinco anos de reclusão. A professora apenas está viva porque, segundos antes de ingerir a bebida, uma aluna advertiu-a sobre o veneno -a classe tinha conhecimento do plano.
Por trás dessa tentativa de assassinato, está uma crescente onda americana, atribuída à crise social e moral e, de quebra, ao feminismo: cada vez mais meninas se igualam aos homens e cometem crimes.
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Nos últimos dez anos, o número de garotas presas por crimes violentos cresceu 125%; meninos e adolescentes, 67%.
De cada dez detenções de jovens no país, pelo menos três são de meninas. Em várias cidades, elas formam temidas gangues e saem no braço com gangues rivais de homens ou de mulheres.
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A violência feminina investe, às avessas, contra o mito da mulher doce e passiva, sempre vítima da truculência masculina -então vai dividir igualdade atrás das grades.
Mas, ao mesmo tempo, mostra que os americanos correm o risco de virar um "Grande Brasil", onde a exclusão social degenera em violência fora de controle.
Os americanos deram, na semana passada, um monumental passo em direção ao projeto "Grande Brasil", ao cortar alguns programas de combate à pobreza.
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Baseados na tese de que os pobres são pobres porque, no fundo, não se esforçam e não procuram empregos, o Congresso, com apoio do presidente Bill Clinton, reduziu expressivamente a ajuda a desempregados e mães solteiras, pisoteando as leis de proteção social criadas há 60 anos.
Até imigrantes legais perdem direito a usar, em casos de necessidade, programas assistenciais; eles viraram cidadãos apenas para pagar impostos.
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O Estados Unidos são extraordinário laboratório a ser estudado meticulosamente pelos brasileiros.
Eles mostram que, apesar do contínuo crescimento da economia, da elevação da produtividade e da inflação baixa, a distribuição de renda piorou, os salários estagnaram; segundo os próprios dados oficiais, subiu o número de pobres.
Basta, aliás, andar pelas ruas de Nova York e ver quanta gente come comida do lixo.
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A taxa de desemprego entre negros é de 30%; não por acaso um em cada três deles tem a chance de, alguma vez em sua vida, parar na cadeia.
A desagregação familiar, aliada à pobreza, gera todos os anos 500 mil filhos de mães solteiras, a imensa maioria sem educação formal.
Apesar de suas falhas, a rede de proteção social serve como colchão. Agora, num ano eleitoral, tiram esse colchão, e, segundo respeitados institutos, num prazo curto, 2,5 milhões de pessoas vão cruzar para baixo a linha de pobreza, 1 milhão de crianças.
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Um dos maiores especialistas em estudos de legislação assistencial americana, o senador Daniel Moynihan, de Nova York, prevê um cenário bem conhecido dos brasileiros.
Segundo ele, o impacto dos cortes vai ser tão grande que Nova York, por exemplo, vai começar a ver meninos pedindo esmolas na rua.
Aliás, críticos da lei no Congresso fizeram referências às ruas brasileiras.
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Em contato com esta coluna, a americana Carole Bellamy, principal dirigente do Unicef, que viaja nesta semana ao Brasil, faz uma tão correta quanto incômoda crítica a americanos e brasileiros.
Brasil e EUA têm um traço em comum. Seus indicadores sociais são muito inferiores a seu potencial econômico.
Basta ver a taxa de mortalidade infantil: ambos perdem vergonhosamente para nações mais pobres.
Motivo, segundo ela, para essa contradição: vontade de querer mudar.
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Não é uma questão de "direita" ou de "esquerda", mas apenas de pragmatismo num mundo em que a rotatividade do emprego é veloz e com altas margens de exclusão social.
A sociedade tem de garantir um rendimento mínimo para quem não consegue trabalhar; é um imposto a ser pago pela paz social.
Se as pessoas aceitam como razoável sustentar as Forças Armadas em nome da segurança externa, por que seria absurdo garantir renda mínima pela paz interna?
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PS - Como imagino que não melhorei muito o humor do leitor nesta coluna, segue uma dica para compensar. Dianna Krall é uma jovem pianista e cantora de jazz que já foi comparada a Ella Fitzgerald. Algumas diferenças: não é negra nem americana, mas canadense e loiríssima.
Apesar desse prontuário estético e geográfico, seu mais recente CD, intitulado "All for You" (GPR Records), uma homenagem ao trio de Nat King Cole, é capaz de melhorar o humor de José Serra depois de pesquisa de intenção de voto.

E-mail GDimen@aol.com
Fax (001-212)873-1045

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