São Paulo, terça-feira, 6 de agosto de 1996
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Cinema era câmera na mão e a dor na cabeça

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Meu único orgulho era meu sofrimento. Na época do Cinema Novo, eu só tinha dois sentimentos alternados: ansiedade e frustração.
Você não sabe, amigo, o que era filmar. Se o FHC não sancionar a Lei do Audiovisual, eu me mato. Eu devia filmar minha vida.
Poderia se chamar "O Oito e Meio dos Desgraçados". Quer mais um chope? Vai que eu pago. Não dá para te explicar tudo que eu sofria no Cinema Novo.
*
O diretor-financeiro da multinacional me deu um pontapé debaixo da mesa. Perguntei: "Que é isso?" Outro pontapé. "Não sabe o que é kickback? É rebate." Entendi que eu tinha de dar uma grana para ele, senão não tinha patrocínio. Dei. Assinei recibo de 100% e levei 50%.
Embrafilme. Na minha frente, um burocrata. A boa apresentação do roteiro contribui para o financiamento do filme. Ao meu lado, um cineasta tem um roteiro chamado "Ikebana", sobre flores japonesas. Meu roteiro era de índios e colonos.
Ouço uma música ao lado. O roteiro do outro tinha luzinhas piscando, musiquinha saindo da caixa e flores de plástico. Elpidio, o burocrata, não se emocionou. Ele não foi financiado.
Eu sim, que tinha puxado o saco do funcionário o ano todo e trouxe do Paraguai um perfuminho "Eau Sauvage" para ele. Consegui uma mixaria.
*
Filmando na Mata Atlântica. Lama, índios e candomblé. Chove para cacete. O assistente grita: "Os índios estão afundando!" No pântano, os figurantes foram afundando. Pescamos os índios. E um maquinista dá um grande esculacho nos índios, já grilados. Xinga, xinga.
Percebo um zum-zum entre uns índios. Pergunto: "O que foi?" O índio: "Nada. É que o pessoal aí resolver matar o Noronha". Dou uma grana pro cacique. Despeço o melhor maquinista, marcado para morrer.
O assistente me diz: "Chove a píncaros!" Mando construir um teto na floresta. Era melhor ter filmado no parque Lage. Estávamos nos anos 70. Todo mundo "viajando" de LSD. Menos eu, claro. Alguém tinha de ficar careta naquela zorra.
Os dois atores principais, dois "hipongões" da pesada, surgem de tranças com fitinha azul e falam numa língua desconhecida -sânscrito? Estavam "viajando" de Artami, droga contra epilepsia que dava um barato sujo.
Depois, eles me contaram que, em seu delírio, eu me transformava numa bruxinha velha que os xingava. E depois eu virava eu de novo. Prejuízo por dia perdido: US$ 15.
*
Todo mundo comendo todo mundo. Menos eu, claro. Eu ia dormir às 23h e acordava às 3h, para observar a maquilagem dos 200 índios e pretos. Os maquiladores viados patolavam os figurantes e atrasavam a filmagem. Eu tinha de vigiar. Arte é isso...
O ator principal resolve papar a mulher do outro ator. Ferido de ciúme, o profissional toma um porre no baile do vilarejo e dá porrada no prefeito, que pede a intervenção do Exército na filmagem dos comunistas pornográficos e drogados.
Puxo o saco do general e despeço o elemento-corno com humilhação. Lágrimas da adúltera e porre do galã que, por amargura, tomou um "pico" na veia do pescoço. Mais US$ 30 mil de "preju".
*
O índio chefe Peixe Vermelho, o querido Tep Kahok, vivia de porre, por exclusão cultural. Era um índio traumatizado. Briga com a mulher e vai morar na minha casinha.
Que jeito? Leva uma jibóia de estimação com ele. "Aquela vaca, tudo bem, mas minha jibóia vai comigo!" Durmo num quarto, Tep no outro e a jibóia na sala.
Tep enchia a cara e ficava cantando em carajá com a cobra: "Kê kê corrirá rarê..." A jibóia era legal.
Todo mundo no LSD e eu careta. Eu fui virando o "cortador de onda", com aquela "mania de filmar".
Um dia, meu assistente, braço direito, me chama num canto e me mostra um pescador de 15 anos. "Ele é meu noivo... Virei viado!", diz.
Dois meses na lama e as baixas aumentam. Tem gente que não aguenta, "pira". Meu assistente casou e mudou.
O filme, que era a história de um fracasso histórico, foi ficando à altura do conteúdo. Vou ficando sozinho na lama. O dinheiro acabando. Cem "guerreiros negros" figurantes me esperam na porta, de madrugada. Ou pago, ou morro. Ao fundo, Tep canta: "Eê... ê... Paranã, ê, paranã", com a jibóia.
Suspendo a filmagem, pego um avião, vou ao Rio, me ajoelho aos pés do dono do banco, o Joãozinho "Mamãe" (se lembra dele?) e ele me empresta uma grana. Volto, pago os crioulos.
E vou terminando a filmagem, eu mesmo batendo a claquete. "Câmera, ação!" -eu sozinho.
Começa a faltar comida. Os índios começam a nos humilhar, em troca de uma galinha e um ovo. Posso dizer que já pedi esmola a índio.
Tep Kahok nos salvou. Ameaçou de morte o outro cacique que se tocou e nos deu ovo e chuchu.
*
Termino o filme. Vou a Brasília, para a censura. Aí de mim... Até hoje, quando desço em Brasília, lembro-me do chefe-censor. Chamava-se Romero Lago. Mas era impostor. Nome falso, soube-se depois. "Dr. Lago... 'Merda' pode?... Que que tem?"
"'Merda' eu não abro mão. Corta!" "Mas, dr. Lago, a 'merda' está no meio da cena principal..." Tive de cortar.
"Filmezinho comuna, hein? Disfarçadinho, pensa que não sei? Corta aqui, ali..." Todo cortado, chega o lançamento.
Vou até a porta do cinema ouvir opiniões, já que ninguém me conhecia. Uns cinéfilos conversam. Chego perto, orelhudo. "Mas que merda de filme, hein?", diz um jovem pálido. Eu, covarde: "Tem coisas boas... Esse diretor é legal..."
O bilheteiro me diz, em pânico: "Vou embora... Veio um cara lá de dentro, brabo, e me disse: 'É o seguinte: Eu não sou burro, mas não entendi nada desse filme! Vou assistir de novo. Se eu não entender, te encho de porrada!'"
*
Pela manhã, o gerente do banco mandava a secretária me ligar cedinho para cobrar promissórias. Vendi minha Kombi cinza e creme para reformar o papagaio.
Saio do banco quase chorando, ali na av. Rio Branco. Encontro dois colegas da faculdade de Direito. Terninhos, gravatas.
"Cara, tu é que é feliz, hein? Mamando nas tetas da Embrafilme, camisa de marinheiro... Diz aqui... Tu tá comendo essas atrizes todas, não tá?"
Minto, modesto: "Não posso reclamar..." Olham para mim com inveja... Saio chorando pela Rio Branco.

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