São Paulo, terça-feira, 6 de agosto de 1996
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CPMF: assalto legalizado

SALO SEIBEL

Está aberta a brecha legal que permite a qualquer cidadão doente invadir bancos e domicílios com a finalidade de apropriar-se dos recursos necessários à sua cura. Não pode ser outra a interpretação da aprovação da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) pela maioria do Congresso.
Senão, vejamos. O governo dispõe de recursos que se mostram insuficientes para cobrir todas as suas necessidades -aí incluído o financiamento do déficit público, que, apesar de dois anos de vigência do Real, não pára de subir. Por decisão exclusiva do governo, decide-se repartir esses recursos de modo a cobrir uma série de despesas, mas não a totalidade das contidas na pasta da Saúde.
Diante do problema, em vez de mexer nas suas contas, o Executivo vai ao Congresso e obtém uma autorização legal para apropriar-se dos recursos de toda a sociedade (exceto aposentados e outros, claro).
Tudo feito não por algum lobby disfarçado, mas pelo governo deste país! Bem, se o governo solicitou e legalmente conseguiu autorização para proceder a apropriação, qualquer assaltante preso que invocar em sua defesa a necessidade de recursos para sua saúde certamente deveria obter o benefício do habeas corpus e ser libertado.
Não há dúvida de que muita coisa precisa ser feita emergencialmente para evitar que mais gente morra por falta de cuidado médico.
A começar pela racionalização dos gastos de governo, pela maior alocação de recursos à Saúde e pela melhor administração dessas verbas com o combate às fraudes no sistema. E a terminar por uma ampla discussão sobre como a iniciativa privada e cooperativas no estilo do PAS de São Paulo poderiam reduzir a necessidade de aumento incessante das verbas públicas na Saúde.
Agora, daí a ultrapassar os limites da ética e legalizar um instrumento de apropriação dos recursos da sociedade vai um passo perigosíssimo. E se, por analogia, o cidadão daqui para frente pudesse assaltar por motivo de doença, então aquele que furtasse alegando fome ficaria definitivamente impune. Falo de milhões e milhões de brasileiros.
O precedente aberto também é um convite à apropriação indébita por parte de administradores públicos inescrupulosos, para dizer o mínimo. Imaginemos o que ocorreria se o governador de um Estado quebrado obtivesse autorização da Assembléia para instituir um tributo com o fim de sanear o banco estadual. Ou se o prefeito de um município legalizasse a cobrança de uma taxa compulsória para realizar obras viárias monumentais.
Evidentemente, seria o Estado apropriando-se dos recursos da sociedade, sem limitação de qualquer tipo. E não é exatamente o que acaba de ocorrer com a instituição da CPMF?
O governo, que exige do empresariado a redução dos desperdícios, a racionalização da produção e a oferta de bens e serviços cada vez mais baratos e com melhor qualidade, evidentemente não faz a própria lição de casa.
Criou mais um tributo. Inegavelmente, na contramão das promessas de campanha do presidente Fernando Henrique Cardoso. Encarecedor dos produtos e serviços domésticos, num mundo em que cada centavo é precioso para que nossa inserção na economia globalizada seja proveitosa ao país.
Tem mais. O tributo foi criado no período de convocação extraordinária do Congresso. Imaginava-se que valeria a pena pagar o alto custo da convocação dos congressistas para finalmente aprovar as reformas constitucionais de que o país tanto necessita: a tributária, a previdenciária e a administrativa. Nada disso ocorreu.
Assim não dá. Ou o governo repensa seriamente a questão e acelera a reforma tributária, de modo que a CPMF nem precise mais entrar em vigor, ou sua credibilidade ficará irremediavelmente comprometida.

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