São Paulo, quinta-feira, 8 de agosto de 1996
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Devia ser, mas não é

JANIO DE FREITAS

Embora com dois anos de atraso, a badalada assinatura da Ata de Chapultepec foi um gesto simpático do presidente Fernando Henrique Cardoso com os proprietários de meios de comunicação, os daqui e os de fora, que tiveram a iniciativa de produzir esse documento internacional. Gesto e simpatia que, além de mútuos, têm ocorrência diária.
A ata reproduz, em dez pontos bastante repetitivos, as propostas mais divulgadas para preservar a liberdade de expressão por intermédio dos meios de comunicação. Se comparada com outras cartas de mesma finalidade, a ata, em sua versão brasileira, tem a peculiaridade de preferir, a qualquer palavra de compromisso cabal do governo, a vaguidão de certo sentido do verbo dever.
As violências contra empresas jornalísticas ou jornalistas "devem ser investigadas com presteza e punidas severamente". Não têm que ser.
"As autoridades devem estar legalmente obrigadas a pôr à disposição dos cidadãos, de forma oportuna e equitativa, a informação gerada pelo setor público." Devem estar obrigadas, mas, se não estiverem, tudo bem. Pois se até nos casos brasileiros em que estão, e são numerosos, a recusa e a liberação discriminatória são praticadas como norma.
Ainda sobre discriminação, o item seis do decálogo tem o que dizer: "Os meios de comunicação e os jornalistas não devem ser objeto de discriminações ou favores em função do que escrevam ou digam". Nesse caso, fique aqui o aplauso entusiasmado ao uso do "devem". Com as discriminações a gente se habitua depressa, e se torna até divertido burlá-las e pegar na curva os discriminadores.
Quanto aos favores a certas empresas jornalísticas e a jornalistas, seria crueldade suspender as retribuições ao que escrevem ou dizem. É um ramo de comércio, empresarial e individual, tão estabelecido quanto outro qualquer. Imagina o que aconteceria às empresas e profissionais desse ramo se, de repente, lhes retirassem a razão de ser empresas e profissionais. E o que seria dos governantes e políticos convencionais, se todos os meios de comunicação e os jornalistas todos só se dedicassem ao jornalismo, sem prestação de serviços políticos e de negócios?
Duro mesmo foi encontrar na ata o item dez: "Nenhum meio de comunicação ou jornalista deve ser sancionado por difundir a verdade, criticar ou fazer denúncias contra o poder público". Por mim, prefiro qualquer coisa a ser sancionado. Se o tradutor do original dissesse "sofrer sanção", ou "ser punido", estaria apenas fazendo mais um item ocioso do decálogo, porque mais fraco do que as leis já existentes. Mas sancionado, como decreto ou lei, isso só "deve ser" possível em relação aos intelectuais do governo, até que aprendam o bê-á-bá.
E o presidente signatário da ata começou seu discurso, na solenidade, por esta frase: "Eu a li (a ata) várias vezes, para verificar se, efetivamente, haveria alguma sombra de dúvida no espírito de quem exerce a Presidência da República".

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