São Paulo, sexta-feira, 9 de agosto de 1996
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A inconfidência baiana

UBIRATAN C. DE ARAÚJO

Em muito boa hora vem à luz este trabalho sobre o movimento popular ocorrido na Bahia em 1798, batizado com vários nomes pelos historiadores: Conjuração Baiana, Inconfidência Baiana, Revolução dos Alfaiates, Revolta dos Búzios. No tempo desta sedição, fervilhava viva insatisfação nos mais diversos segmentos da população da cidade de Salvador: entre os ricos, como o liberal Agostinho Gomes, contra o exclusivismo comercial; entre os que aspiravam o acesso ao poder político, como Cipriano Barata, contra o absolutismo monárquico; entre o povo livre negro-mestiço da cidade, contra a discriminação racial e a exclusão social e política.
Retomar o estudo da sedição de 1798 é tarefa mais difícil do que se imagina. Sobre a mesma base documental conhecida e publicada, os "Autos da Devassa do Levantamento e Sedição Intentados na Bahia em 1798", várias escritas históricas se produziram, buscando responder aos requisitos os mais diversos. O regionalismo baiano fez dos Alfaiates um dos seus avatares, visando demonstrar a maior contribuição baiana, mais social e mais popular do que a mineira, para a formação do Brasil independente. Aí também buscou-se a manifestação sul-americana da Revolução Francesa que, segundo alguns historiadores, viajou mundo afora. Outros daí extraíram o esboço de um proto-proletariado brasileiro, já precocemente socialista. Hoje, grupos culturais como o Olodum recuperam o caráter étnico da sedição de 1798, chamando-a inclusive pelo seu nome mais popular: Revolta dos Búzios. Neste campo minado, a sobrevivência depende da capacidade de interpretação. Neste domínio, István Jancsó se esmerou! Procedeu a uma verdadeira fotossíntese da matéria histórica.
Inicialmente, o autor faz uma rigorosa crítica da historiografia que trata da contestação na colônia, bem como das possibilidades teóricas da interpretação das práticas contestadoras. Com muita pertinência, situa a insatisfação contra o regime colonial no Brasil em um quadro ibero-americano e insere este na conjuntura européia, na crise "Ancien Régime". É extremamente enriquecedor, como também curioso, ver comparada ou confrontada aos Alfaiates da Bahia a contestação ao "Ancien Régime" na Hungria e na Polônia, o que não deixa de estar na contra-corrente da tendência atual de uma historiografia de matriz antropológica, que prefere uma leitura mais particularista da história e um recorte menor de seus objetivos.
No entanto, a abordagem globalizante do autor não dispensa uma caracterização atenta da formação sócio-econômica baiana, na qual trilha um caminho conceitual aberto por Florestan Fernandes, com grande influência de Kátia Mattoso, ressaltando o caráter estamental de uma sociedade escravista, de onde faz emergir o sistema de contradições que engendra a revolta.
Ao entrar diretamente na matéria histórica a ser traduzida, a sedição de 1798, por um breve momento o empenho interpretativo cede espaço a uma preciosa narrativa da movimentação dos sediosos e da ação repressiva. Para sustentar a sua tese de um ensaio de união nacional contra o regime colonial português na sedição de 1798, constrói uma refinada argumentação que conduz a um ponto da intercessão de dois projetos contestadores: o projeto das elites coloniais descontentes, ou seja, dos brancos da terra, que conspiraram; o projeto dos partidários da igualdade, os negros e mulatos, que agiram.
Jancsó descobriu no arquivo do Tombo, em Portugal, os autos do interrogatório feito em 1803 contra dois ingleses: Diogo Gelliton e João Farrel. Os acusados falam de José Borges de Barros, comerciante baiano, falsificador de moedas, e de seus mirabolantes planos de sublevação da Bahia, incluindo a aliança com soldados e mulatos. Na trajetória deste comerciante o autor busca a evidência da participação ativa, e até hegemônica, das elites coloniais na sedição de 1798.
Esse Borges de Barros é um personagem mal identificado na documentação relativa à sedição, trata-se possivelmente de um irmão do rico Domingos Borges de Barros, tão excentricamente liberal que dispunha-se a defender nas Cortes de Lisboa, em 1821, para a qual fora eleito deputado, a libertação das mulheres que, segundo ele viviam submetidas a uma escravidão mais odiosa que a dos negros. Sua filha, a condessa de Barral, liberalíssima em sua correspondência com Pedro 2º, foi uma senhora de engenho atípica. Avessa à escravidão, liberta os escravos de seus engenhos de açúcar, desativando-os em seguida. Se o comerciante José foi excêntrico como o irmão e a sobrinha, poderia ele ser um legítimo representante de sua classe nas negociações com o povo afro-brasileiro?
Busca também o autor, do lado dos Alfaiates, os sinais de abertura para as elites descontentes da colônia, usando a linguagem comum da ideologia revolucionária francesa. Neste particular, reage às leituras feitas pelos historiadores que propõem uma revisão da influência do iluminismo, da Independência americana e da Revolução Francesa nas inconfidências brasileiras, tais como Kenneth Maxwell e, principalmente, Kátia M. de Queirós Mattoso. Para tanto, István retoma a leitura dos boletins afixados pelos sediciosos em locais públicos na Bahia, os mesmos analisados pela historiadora baiana, para fazer a sua demonstração em sentido contrário: um projeto de revolução nacional alimentado pelas chamadas "idéias francesas". A qualidade das duas análises torna esta controvérsia da maior relevância.
O último capítulo é seguramente o mais polêmico do livro. Nele, o autor recompõe uma pauta de reivindicações, um projeto de alianças, um esboço institucional para um "novo regime" formulados pelos Alfaiates. Aí, com Lukács na cabeça, Revolução Francesa à mão como paradigma e olhos voltados para as experiências históricas do Leste europeu, entrega-se apaixonadamente à construção de um modelo universal de revolução política possível, em sociedades agrárias e coloniais. Ao ler este último capítulo, fui quase levado a acreditar que João de Deus do Nascimento era polonês! Atenuado o impacto, percebe-se que a rica erudição dos argumentos e os imperativos lógicos da interpretação terminam empurrando István Jancsó excessivamente a leste, afastando-o em muito de sua abordagem inicial ibero-americana, pela qual seguramente teria encontrado na Bahia as influências de uma revolução liberal sul-americana, bem mais aculturada, com menos partidos e mais caudilhos, com menos dietas e mais cabildos e câmaras municipais, na qual a referência mítica é Bolívar e não Danton.
No entanto, o que decerto produzirá um debate mais vivo é a proeza que consegue o autor em montar um modelo de ação revolucionária com referências intelectuais, políticas e culturais exclusivamente européias, tendo como matéria histórica estudada uma sedição que a rigor foi intentada por negros e mulatos. A cor foi tratada no livro apenas como um elemento de discriminação em uma sociedade estamental e escravista. Negros e mulatos não foram estudados também como portadores de uma cultura afro-brasileira, na qual se processariam formas diversas de entender e projetar um ideal nacional, formas organizativas peculiares, bem como limites e condições de alianças possíveis com os brancos da terra.
Pela correção metodológica, pela erudição e pela polêmica que provocará, o livro poderá cumprir o papel de reavivar a reflexão sobre a dinâmica das lutas de classes na História colonial brasileira. E mais, sua importância ultrapassa os requerimentos de um público amante da história, pois trata de uma problemática crucial, qual seja a reflexão sobre as possibilidades de articulação política de classes diferentes em torno de objetivos nacionais, que é atualíssima em um momento de crise econômica mundial e de agravamento de tensões sociais, no qual se manifesta uma tendência generalizada à desagregação política (aquilo que Michel Mafesoli chama de "transfiguração do político ou tribalização do mundo"). É hora de pensarmos todos, cidadãos deste país, o Estado nacional brasileiro como projeto incompleto, e o livro de Jancsó traz valiosa contribuição neste sentido.

Ubiratan Castro de Araújo é professor do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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