São Paulo, sexta-feira, 9 de agosto de 1996
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Censura, não; ofensa basta

CHICO CÉSAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sou negro, não fumo maconha nem tomo pico de heroína. Mas este texto encaixa-se com perfeição no que se chama "legislar em causa própria". Escreverei aqui sobre as tentativas de censurar via governo Tiririca, Planet Hemp e "Trainspotting", o tal filme sobre heroína.
Sou compositor de música popular e ex-jornalista. Adepto da liberdade de expressão, por necessidade. E favorável a uma intervenção cada vez mais branda do Estado no controle da área de artes, comunicação e entretenimento. Entendo que a sociedade civil tem abdicado da tutela estatal e está aprendendo a viver (bem!) sem ela.
Os recentes ensaios da Justiça em casos distintos e diversos no sentido de proibir a circulação de algumas obras (e, goste-se ou não, idéias) merecem repúdio. Os motivos que levam as pessoas, isoladamente ou em grupo, a pedir que o Estado censure merecem reflexão.
Censura econômica ou ideológica bancada pelo governo deve ser repelida com vigor. A cidadania já dispõe de alguns instrumentos legítimos e dinâmicos para dialogar com seus artistas e empresários da indústria de espetáculos. É preciso torná-los eficazes -e, talvez, criar outros.
Há o boicote puro e simples (ao produto e seus patrocinadores), o piquete, as manifestações pacíficas fora (ou dentro!) das salas que exibam shows, filmes, peças, exposições plásticas com as quais não concordamos moral, estética ou ideologicamente, cuja apresentação nos parece ofensiva, deletéria.
E há a busca do bom senso, o diálogo entre os que se julgam ofendidos e os supostos ofensores. Com a possibilidade de medidas concretas, tais como um pedido público de desculpas e até mesmo a retirada da obra de circulação pelo artistas -por ele, e mais ninguém.
Para mim, é tranquilo defender a realização de shows do Planet Hemp ou a apresentação de "Transpotting". É como -não faz muito tempo- ser contra a proibição da música "300 Picaretas", dos Paralamas; ou "Eu Matei o Presidente", de Gabriel o Pensador; ou "Merda", de Caetano Veloso. Ou ainda o pedido para vetar "Lamarca", de Sérgio Rezende; ou os vetos a "Je vous Salue Marie", de Godard, e "A Última Tentação de Cristo", de Scorsese.
Tiririca
Bem, agora vamos ao caso Tiririca. O homem de circo que encarou e venceu tantos revezes em sua caminhada rumo ao sucesso, com graça, simplicidade e sabedoria, pode desfazer esse mal-entendido criado pelas ofensas contidas em sua "Veja os Cabelos Dela". Ofensas à mulher negra, à mulher em geral, aos negros em geral e a todas as pessoas que acreditam numa sociedade multirracial.
Creio que se trata mesmo de uma brincadeira sem a intenção de magoar ninguém. Como a de meus colegas brancos de primário e ginásio que às vezes "de brincadeira" me chamavam de "nego fedorento" ou "tição".
Não gostava da brincadeira e, como todos os meninos negros, respondia impropérios aos "brancos azedos" e "galegos-de-água-doce".
Dessa vez também não gostei da brincadeira, da qual só tomei conhecimento pela repercussão junto ao Centro de Articulação de Populações Marginalizadas e seus desdobramentos: a infrutífera gestão junto à gravadora para que o disco fosse recolhido diante do óbvio conteúdo racista da música, o apelo à Justiça, a recomendação desta para que o disco fosse recolhido, a desobediência da gravadora e seus desdobramentos.
A gravadora de Tiririca pode ajudá-lo a desfazer o equívoco, a lambança, aceitando que ele retire a música de seu repertório e do seu disco. Isto se ele não quiser ficar com a carapuça do "branco sujão" de que nos fala Gil em "A Mão da Limpeza".
Caso não o faça, os negros e brancos comprometidos com a liberdade de expressão e a convivência digna entre brasileiros -os mais brancos com os mais pretos, sem esquecer os quase índios- devem pedir que o Estado recolha-se ao papel de espectador moderado. E devem procurar formas cotidianas, citadinas e coletivas de combater a ofensa. Isso é entre nós e eles.
O boicote... O esclarecimento... O piquete... A vaia... A operação tartaruga nas bilheterias... A compra de ingressos com moedas de 1 centavo... O anti-estraçalhamento... O happening rouba-show onde o ofensor estiver se apresentando. Censura, não. Ofensa, basta.

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