São Paulo, sábado, 10 de agosto de 1996
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Orixás podem acabar com apatia do Brasil

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Ninguém fez mais para destruir no mundo a praga do racismo do que Adolf Hitler quando resolveu se meter no mundo das competições esportivas.
Em 1936, na Olimpíada de Berlim, Hitler fez saber aos povos que ia provar a superioridade atlética da raça ariana. Foi humilhado e reprovado como profeta sobretudo pelas façanhas do negro americano Jesse Owens, que ganhou em Berlim nada menos que quatro medalhas de ouro correndo e saltando.
Hitler passou então a concentrar suas esperanças de vingança em uma modalidade de competição que humilharia os patrícios de Owens profundamente: o pugilismo.
Os alemães tinham então um boxeador importante, Max Schmeling, que precisamente no amargo ano olímpico de 1936 derrotara no ringue um negro americano chamado Joe Louis.
Pois a Alemanha nazista conseguiu, em 1938, que uma luta fosse marcada entre Schmeling e o dito Joe Louis, bem mais importante agora já que se consagrara, em 1937, campeão dos pesos pesados. Era o Mike Tyson da sua geração.
O combate entre Schmeling e Joe Louis se travou em Nova York, em junho de 1938. Bem. Dizer que "se travou" não é bem o caso. No primeiro round, na primeira saraivada de murros que lhe aplicou Joe Louis, a raça ariana caiu meio desacordada na lona do ringue. Estava encerrada a luta.
Estive relembrando estas passadas derrotas de Hitler (ele foi, tudo levado em consideração, a pior consequência que já houve da lenta transformação do símio em ser humano) porque a Olimpíada de Atlanta representou uma espécie de alegre funeral do racismo no mundo.
A enorme safra de vencedores negros, mas também de amarelos e de mestiços em geral, mostrou, no mundo cru da força de vontade e da fúria de se ultrapassar que formam a essência olímpica, que o homem é o que é por motivos muito mais secretos do que a cor da pele que lhe confere o sol da região da Terra em que vive e em que viveram seus antepassados.
O homem surgiu na África, de pele preta, e foi, com as milenares migrações, desbotando segundo o clima, até ficarem alguns como, digamos, Fernando Scherer, o Xuxa. Isto me parece, hoje, puro fato científico. Mas que uma Olimpíada como a de Atlanta prove a tese com tanta clareza e naturalidade, encerra o assunto. Uma alegria. É, como dizia o Eça, de derreter os untos.
A mais simbólica das provas olímpicas -por isso mesmo foi ela a última- é a da maratona. Pois foi ganha por um atleta negro da África do Sul, medalha de ouro. Teve em segundo lugar um coreano, medalha de prata, e o terceiro a chegar foi um negro do Quênia, bronze.
Neste "brave New World" multirracial o Brasil tem tudo para entrar com boa ginga. Mistura racial é com a gente mesmo. Superioridade racial é refúgio de quem é composto de muita pele e pouco miolo, como bem viu o antropólogo Franz Boas (1858-1942) que foi, na Universidade de Colúmbia, professor do então jovem sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, que acabaria pelo menos tão grande quanto o mestre com a série magistral de "Casa Grande e Senzala", "Sobrados e Mocambos", "Nordeste".
Para finalmente se transformar em um verdadeiro e moderno país só falta ao Brasil... O que é mesmo que falta ao Brasil?
Em dois momentos da Olimpíada de Atlanta -em que conquistamos um honroso 25º lugar entre 197 concorrentes- ficamos bobos, bambos. A Nigéria negra nos deixou sem pernas no futebol e as americanas negras sem mãos no basquete. Não é que jogássemos mal. Deixamos de jogar. Caipiramos. Viramos, de repente, um time de Jecas Tatus diante dos nigerianos e de Jecas Tatuas diante das americanas. Desconfio que há, nos dois jogos, alguma coisa a apurar que talvez ajude a nos conhecermos melhor.
Por exemplo: não aconteceu no Brasil nada, absolutamente nada, quando a República foi proclamada em 1889. Atribui-se ao republicano Aristides Lobo a frase que ficou famosa: "O povo assistiu a tudo bestificado". Pois eu diria que tanto no jogo contra os nigerianos como no outro, contra as americanas, assistimos à nossa própria derrota bestificados.
Pessoalmente, não tenho explicações para o que aconteceu nessas nossas duas derrotas de Atlanta. Os orixás talvez saibam e sobre eles Abdias do Nascimento acaba de publicar um livro intitulado exata e singelamente "Orixás".
Talvez tenha sido pura coincidência a época em que foi publicado, mas o livro é olímpico em sua beleza. Por incrível que pareça, só vim a saber que Abdias do Nascimento era "também" um pintor alguns anos atrás, na já mencionada Universidade de Colúmbia, quando lá dei um curso. Eles tinham telas de Abdias. E agora tenho em mãos "Orixás, os Deuses Vivos da África". Um luxuoso álbum de telas de Abdias, com texto em português e inglês.
Conhecemos todos as lutas de Abdias do Nascimento para provar com suas palavras, às vezes cheias de ira, e seus trabalhos como deputado federal e senador da República, como poeta ou teatrólogo, que o Brasil foi construído sobretudo com o trabalho do negro.
E os perfis de Abdias que neste "Orixás" traçaram Guerreiro Ramos, Muniz Sodré, Joel Rufino, Gerardo de Melo Mourão, além de autores africanos e americanos dispensam que se apresente mais Abdias.
O que aconselho aqui é que as pessoas descubram no "Orixás" o pintor extraordinário. Folhear "Orixás" é como percorrer uma suntuosa catedral negra. Ou visitar as câmaras de alguma pirâmide africana descoberta de repente no Congo de Conrad.
Só posso repetir aqui o título de um dos artigos desse livro, escrito por Ola Balogum aos pés de uma imagem de Iansã que Abdias pintou como uma negra Afrodite emergindo hierática do mar azul-negro com uma estrela na ponta de um braço e uma lua na outra: "O filho de Iemanjá pinta o mundo".

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