São Paulo, segunda-feira, 12 de agosto de 1996
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Barro

JOÃO SAYAD

Questão de gosto. Prefiro Napoleão a Danton; d. Pedro 1º a Tiradentes; Getúlio Vargas a Eduardo Gomes; Stálin a Trotsky; Fidel Castro a Che Guevara; o curriculum vitae do ministro Roberto Campos, um dos fundadores do BNDES e autor do "Plano de Metas" de Juscelino, aos escritos do senador e deputado; o ministro Delfim Netto ao ministro Octavio Gouvêa de Bulhões; a prática de Gustavo Franco à sua teoria.
Gosto não se discute, mas posso explicar. Prefiro os personagens que têm coragem de assumir contradições, realizar obras imperfeitas, esquecer os efeitos cruéis de suas decisões ou considerá-las inevitáveis. São mais sinceros e, talvez, até mais humanos, mesmo na crueldade de seus atos, do que os doutrinadores e filósofos inatingíveis e superiores, protegidos pela lógica de suas teorias.
Não gosto mesmo é dos jacobinos: crédulos, imaginando-se anjos da verdade, mas cruéis e implacáveis ao operar a guilhotina. Para cada cabeça rolada, uma justificativa teórica aplacava as suas culpas. Eram inocentes das verdadeiras consequências das suas decisões.
Acreditavam que a Revolução Francesa destruiria o poder da nobreza e faria a felicidade dos camponeses. Não podiam ver que as boas intenções dos revolucionários preparavam um imenso contingente de operários para trabalhar dia e noite nos teares, minas de carvão e fábricas dos burgueses. Napoleão não teve dúvidas em se coroar na presença do papa e nomear seu filho rei de Roma, em nome dos ideais democráticos.
Prefiro os resultados cruéis do neoliberalismo a ter de ouvir as explicações de seus defensores. As coisas são como são por razões muito mais importantes do que as imaginadas por seus intérpretes.
Na semana passada, o professor Robert Barro, ex-Universidade de Chicago e atual Universidade de Harvard, esteve em seminário na Faculdade de Economia e Administração da USP. E sentenciou: o Plano Real não tem futuro, por causa do déficit público, e o Brasil não vai crescer tão rapidamente quanto a Argentina ou o Chile, porque somos analfabetos e não temos educado as crianças brasileiras corretamente.
O pessoal de Chicago é muito difícil. Tem sempre afirmações taxativas: o governo errou, o Banco Central se equivocou, "descobrimos" que o mundo é assim ou assado e qualquer outra proposta é irracional.
São muito competentes -o curso lá é puxado, competitivo (metade dos alunos é reprovada), os professores são brilhantes. São ótimos personagens para atear fogo e dar vida às mesas-redondas sem graça dos programas de televisão da madrugada.
85% dos economistas brasileiros pós-graduados estudaram nos EUA, boa parte na Universidade de Chicago. Tenho muitos amigos que estudaram lá.
Como será possível enfrentar as ameaças do professor Barro? Como vamos cortar o déficit público e dar escola primária para nossas crianças?
Grande parte das despesas públicas no Brasil e nos Estados Unidos de Barro é com juros. Os grandes cortes de despesas, lá e cá, foram sobre despesas sociais e de investimentos.
O professor Barro e a Universidade de Chicago afirmariam que os juros foram determinados pelo mercado, pela oferta de poupança(!) e demanda de investimentos. Paul Volcker, Greenspan, Loyola, Arida, Gros, Marcílio e Malan nunca existiram, foram apenas os guardiães da ordem financeira. Então, não dá para cortar juros.
Como cortar o déficit para arranjar dinheiro para a educação primária? Cortando verbas da educação não-primária, verbas para estradas que transportam a soja com maior teor de gordura e mais barata do mundo para os portos que a tornam muito cara? Verbas da saúde?
Cortando verbas da Previdência Social e esperando que os operários mais velhos, que trabalharão por mais tempo, encontrem emprego como corretores de imóveis, seguros ou em outros setores de serviços, como imagina o ministro Cavallo?
Em outubro de 1796, chegou a Vila Rica o arcebispo Benedito de Fontainhas, realizando mais uma "visitação do Santo Ofício". Era um jesuíta da Inquisição, um soldado de Deus.
Por uma semana, permitiu que os habitantes da cidade mineira fizessem denúncias de concubinato, bruxaria, heresia, sacrilégio, profanação. Vizinhos intolerantes, inimigos políticos, amantes frustrados, homens traídos se apressaram a apresentar denúncias.
Os desafortunados que recebessem mais de uma denúncia eram chamados, julgados e enviados para o Rio de Janeiro. Não existe registro sobre o seu destino.
Em 96, passaram por aqui vários economistas. Falaram de déficit público, déficit comercial, taxa de câmbio, erros e acertos. As acusações podem estar certas. Pode haver concubinato, sacrilégio, heresia. Os julgamentos deixam muito a desejar. É difícil prever o seu destino.

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