São Paulo, segunda-feira, 12 de agosto de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Pra não dizer que não falei da censura

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Uma grande briga contra a censura de um filme aconteceu já na democracia. Pressionado pela Igreja e, possivelmente, pela própria mãe, Sarney decidiu proibir.
Foi preciso desobedecer rodando o filme em sessões especiais, às vezes com a Polícia Federal na platéia.
Aí veio o Plano Cruzado e fomos engolidos pela euforia do momento.
O tema volta agora, perigosamente, com a tentativa de proibir "Trainspotting". Alguém leu no "New York Times" que o filme não era uma condenação decisiva do consumo de drogas.
Um advogado escreveu para os jornais, dizendo que o exibidor não mostraria "Trainspotting" se tivesse um filho com problemas de droga.
Os defensores da censura acham que o diretor deveria condenar a heroína, recusando seu papel de artista e assumindo o de terapeuta cívico.
É a velha história da mensagem positiva, as pessoas esperando que o diretor pare a cada instante para fazer uma pregação moral, detenha o curso real dos personagens, dê algumas piscadelas para a platéia ávida de bons exemplos.
Mas quem foi que disse que o artista deve seguir esse caminho? Em nome de que mobilização social vamos assassinar sua liberdade estética?
A escritora irlandesa Edna O'Brien conhece bem esse jogo. No seu país de origem, foi muito criticada porque seus personagens eram problemáticos, faziam amor livremente e toda essa coisa que escandaliza.
Em sua passagem por Paris, Edna O'Brien desabafou, numa entrevista ao "Magazin Littéraire":
"Se escrevesse um editorial na imprensa, emitiria um julgamento. Mas o dever de uma obra de ficção é se aproximar do segredo profundo das pessoas por meio da linguagem, de uma forma que a própria vida não consegue. Quando você entra no personagem de Mc Greevy (terrorista perseguido pela polícia), você percebe que ele é comovente. Foi o que algumas pessoas, e os ingleses, detestaram no meu livro. Quando você ouve os leitores, você desconfia que eles não leram o mesmo livro. Isso porque cada um projeta seus próprios preconceitos e esperanças. Mas o que quis fazer foi erguer um cenário de Norte e Sul, descrever um homem, uma mulher, seus pontos de vista e suas sensibilidades, sem emitir julgamentos".
O que ela diz aí, creio, seria subscrito pela maioria dos artistas.
Edna O'Brien acha escrever uma arte dificílima, intolerável se faltar total liberdade de criação.
Imagine culpar o artista pelos feitos de seus personagens, acusá-lo de omissão por não lançar a mensagem positiva, aquela palavra de esperança e fé que ouvimos nas preces, nos discursos políticos, nos editoriais?
Refletindo sobre Shakespeare e seus personagens (Lear, Otelo, Hamlet), Bertrand Russel chegou à conclusão de que o grande poeta inglês era um fabricante de assassinos.
Mas concluiu também que, se essas peças sobreviveram, é porque os espectadores gostam de um drama, estabelecendo assim um vínculo secular com o escritor.
O Brasil viveu um momento em que essa tensão entre a mensagem política e uma obra de arte íntegra foi tema de debate popular.
"Sabiá", de Tom Jobim e Chico Buarque, versus "Pra Não Dizer que Não Falei das Flores", de Geraldo Vandré. Foi no Maracanãzinho, um festival de música.
Grande parte da oposição ao governo militar torceu por Vandré. Afinal, estava passando uma mensagem naquele momento delicado.
E que mensagem, criticando precisamente a ditadura, soldados perdidos com a arma na mão e, para terminar, um convite à transformação histórica: quem sabe faz a hora, não espera acontecer.
Tom ficou triste, dizia-se no Degrau, o bar que ele frequentava. "Sabiá" tinha uma linda melodia e versos de Chico Buarque, falando da sensação de exílio (não político) com uma força que jamais foi superada em versos sobre a saudade do Brasil.
No entanto, o valor estético acabou sucumbindo diante do "engajamento" (era esse o termo) da canção de Vandré, pelo menos na preferência de uma esquerda radicalizada pela ditadura.
Confesso que fui cúmplice dessa trombada estética. E confesso de coração aberto, porque já paguei meus pecados. Qualquer greve, qualquer piquete, qualquer demonstração há alguém cantando a canção de Vandré.
Cada vez que ouço é como se movesse uma conta do rosário, marcando a dimensão da minha penitência histórica.
Proibir "Trainspotting" não significa apenas privar o Brasil de um dos filmes mais interessantes do ano.
Seria uma espécie de recaída, um mergulho no abismo da arte escravizada, no inferno pavimentado de histórias edificantes, da estética autoritária, fantasmas de heróis positivos, músculos de ferro, olhar fixo num amanhã que canta.
Se Hamlet tem tanta dificuldade entre ser ou não ser, por que vamos determinar seu destino, fechar seu horizonte?
Será que a sociedade brasileira, embriagada pela arte interativa, vai lançar um olhar retrospectivo em todas as grandes obras e determinar um novo desfecho?
Ainda assim teria que nos respeitar, nós que preferimos o original, que nos reconhecemos nas contradições dos personagens e nos sentiríamos traídos se quebrassem esse vínculo mágico com uma reles aula de moral e cívica.

Texto Anterior: Mostra tem hoje "As Meninas"
Próximo Texto: Jornalista lança livro inspirado em obra de Lima Barreto
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.