São Paulo, segunda-feira, 12 de agosto de 1996
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Precisamos de otimismo

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Saiu de casa com fome. Com fome chegara na véspera. Passara a noite se revirando no colchão estendido no chão, a cama fora penhorada. Estava na pior: na fome e no chão.
Até que não reclamava. O diabo é que a mulher e os dois filhos não tinham a mesma "estrutura". Ele chamava de "estrutura" a capacidade de passar dois, três dias sem comer quase nada. E de andar pela cidade, das sete da manhã às sete da noite, em busca de emprego, de um bico que lhe salvasse a lavoura.
Fora demitido um ano atrás, enxugaram a gordura do banco. Apesar de seus apenas 55 quilos, foi considerado gordura e demitido. Com a pequena indenização, deu para se aguentar uns tempos no quarto-e-sala do Catete, mas foi perdendo tudo, até a cama fora penhorada, o resto foi vendido.
No início, recebia a solidariedade dos antigos amigos e colegas. Quando começava a entrar em desespero, tomava coragem e mordia um ou outro. Aos poucos, percebeu que era evitado. Os seguranças das agências o enxotavam, como se fosse ele o responsável por tudo, um mau exemplo e, sobretudo, uma péssima advertência, um emissário do azar.
Até que encontrou por acaso o editor de uma revista. Prometeu-lhe vagamente um lugar de contínuo na redação, sem carteira assinada, na base do "pró-labore".
Ele nem sabia ao certo o que era "pró-labore", mas decidiu encarar. Fosse o que fosse, não podia ser pior do que nada. Chegou à redação, estavam todos voltados para a TV, assistindo a um pronunciamento do presidente da República em rede nacional.
O primeiro-magistrado da nação, maquiado como um defunto de Evelyn Waugh, dizia que o Brasil tinha um compromisso com o progresso, que o PNB subira a níveis de Primeiro Mundo, que as divisas haviam aumentado, os desníveis de renda eram coisa do passado.
Só havia uma nuvem toldando o horizonte: os brasileiros precisavam de mais otimismo.

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