São Paulo, domingo, 18 de agosto de 1996
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A ponte

JANIO DE FREITAS

Desde o primeiro minuto de ontem, está à disposição do país, sob a forma de tíquete de pedágio, uma eloquente comprovação do quanto as privatizações, sejam por venda ou por concessão, estão sujeitas a negociatas em tudo contrárias à população e aos cofres públicos.
O pedágio em questão é o da ponte Rio-Niterói, privatizada por concessão ao consórcio das empreiteiras Andrade Gutierrez e Camargo Correa. A privatização foi precipitada por Alberto Goldman, quando ministro dos Transportes pelo PMDB quercista no governo Itamar Franco, sob o argumento de que a segurança da ponte exigia obras urgentes de R$ 200 milhões, que o governo não tinha.
A concorrência, como acontece sempre que alguém presta atenção em concorrência no Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, foi tumultuada desde o primeiro momento. Levada à apreciação inicial no Tribunal de Contas da União, já o ministro Carlos Átila registrou a suspeita de tramóia no pedágio fixado, pela brecha contratual para os concessionários o aumentarem.
O consórcio vencedor comprometeu-se a cobrar o pedágio de R$ 0,78 para automóveis, a partir da conclusão das obras prioritárias e da montagem de toda a nova infra-estrutura de apoio e socorro aos usuários. No pedágio inaugural, cobrado ontem, o preço já era de R$ 1,20. Autorizado pelo diretor do DNER, Maurício Borges. DNER é aquele departamento já qualificado ali atrás.
Até pela correção monetária feita pelos próprios concessionários, porém, o preço atualizado seria, no máximo, de R$ 1,08. A diferença até R$ 1,20 foi pedida (e aprovada) como "pagamento retroativo" pelos oito meses em que a ponte foi usada sem pedágio, entre o contrato de concessão e ontem.
Como os futuros aumentos terão por ponto de partida R$ 1,20, os usuários da ponte vão pagar para todo o sempre o adicional, cada vez maior, pelos oito meses em que nada pagaram. Nem tinham que pagar, porque a cobrança teria de seguir-se a certas obrinhas que não estavam feitas. Mas esta é só a primeira falcatrua que compõe o vasto estelionato. Pois os oito meses foram espichados pelos próprios concessionários. Por obras demoradas? Vejamos.
Só foram feitas obras de maquiagem na ponte. Não só porque fosse mentirosa a alegação de que a segurança da ponte exigia obras urgentes de R$ 200 milhões (nem depois da forte trombada de um navio, há pouco, em um pilar central, os técnicos encontraram risco à segurança). Os tais oito meses foram motivados porque os concessionários não queriam aplicar dinheiro seu nem na miúda maquiagem: esperavam dinheiro com carimbo governamental, dinheiro do estatal BNDES.
É, isso mesmo. O governo tem entregue a grupos econômicos, de graça, as principais rodovias e a ponte e, em seguida, proporciona-lhes o dinheiro para as obras que lhes darão maiores lucros. A Presidente Dutra, a Rio-Juiz de Fora, a Rio-Teresópolis-Além Paraíba e a ponte receberam do BNDES financiamentos que totalizam R$ 365,6 milhões. Ou seja, as obras -as reais e as fictícias- vão ficar em custo zero. E é presumível que parte do financiamento seja a tradicional superestimação que é lucro puro.
Para dar uma idéia do que representa aquela generosidade do BNDES, segue-se a relação dos gastos com obras rodoviárias incluídos pelo governo no Orçamento deste ano: "eliminação de 321 pontos críticos, conservação de 41.793 km, construção e pavimentação de rodovias e, ainda, manutenção da sinalização rodoviária". Com tudo isso, o gasto é de R$ 404,764 milhões. Apenas 10% acima do concedido para maquiagem de três estradas e uma ponte privatizadas.
São ilustrativas, ainda, as condições dadas aos beneficiários da privatização: dois anos sem pagar nem um centavo, a partir daí, oito anos para pagar, mas prorrogáveis como qualquer empréstimo, e juros, ah, os juros, da taxa de longo prazo mais 5,5%. Não ao mês, não. Ao ano.
O Tribunal de Contas da União voltou a examinar a privatização da ponte. Já iniciou, por determinação do ministro Fernando Gonçalves, uma auditoria. O deputado Augusto Carvalho, que tem sido, ele sozinho, um tribunal de contas, desde o início investiga, descobre, denuncia ao TCU e ao Congresso as tramóias que fazem uma ponte entre privatização e corrupção. Esse tipo de esforço é inglório, tem quase tudo contra, mas, se não der em mais, ao menos mostra o que está sendo feito do que se chamava patrimônio nacional.

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