São Paulo, domingo, 18 de agosto de 1996
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A reinvenção do Estado

ROBERTO CAMPOS

Nos anos 50, o grande desafio brasileiro era o desenvolvimento. Encurtar a distância que nos separava dos países industrializados. As atuais gerações mal podem fazer uma idéia do que isso queria dizer. A República Velha mantivera o país "essencialmente agrícola", repartido entre oligarquias locais, enquanto as elites achavam que, com quinino para a maleita, formicida para a saúva, e alguma instrução, o Jeca Tatu viraria civilizado, e o gigante adormecido acordaria, impávido colosso, do seu berço esplêndido.
Getúlio Vargas, chegando com a Revolução de 1930, não foi além da sua época. Autoritário, via no Estado o regulador de todas as faces da vida social e o adjudicador último dos conflitos de interesses. Influenciado pelo fascismo, promulgou uma legislação trabalhista e sindical corporativista, e alimentou um nacionalismo próximo da xenofobia e da idéia de autarquia econômica. Foi, a seu modo, um modernizador. Deixou um bom serviço público (que o clientelismo político depois mutilaria). Com a cooperação americana, fez os primeiros inventários realísticos das carências e recursos do país, e procurou criar indústrias de base, das quais a siderúrgica se tornou um símbolo popular.
Mas a concepção getuliana já trazia embutida a obsolescência predefinida pela concepção do Estado. Claro que o mundo era então muito diferente de hoje. De 1914 a 1946, gerações inteiras foram sacrificadas por duas guerras terríveis, pela proliferação do fenômeno novo do totalitarismo e pela instabilidade econômica que degeneraria, em 1930, na Grande Depressão. Esta destruiu um século de ordem internacional e pareceu prenunciar o fim da economia de mercado. Nesse tempo, os regimes políticos, aqui e alhures, estavam estalando nos seus pontos mais fracos. O totalitarismo soviético e o fascista haviam imposto a supremacia absoluta do Estado, e nesse ambiente de todos inimigos de todos, não se achava mais lugar para o indivíduo, para as franquias políticas e para as liberdades civis.
Mal saídos da Era Vargas, nossos políticos optaram por uma extensa, mas superficial democratização, e voltaram às suas querelas de sempre, sem uma revisão séria da herança do Estado Novo. Começávamos a nova vida sem novas idéias. Mas dos debates de um grupo de rapazes, que se reuniam no "Grupo de Itatiaia", no Ibesp e no Iseb para pensar sobre o Brasil, surgiria uma provocante tomada de consciência, que viria a ser a principal fonte teórica do "desenvolvimentismo" de Juscelino Kubitschek. A fórmula desenvolvimentista vinha na hora certa, e seu sucesso a prolongaria muito além do seu limite de validade. Era (e ainda é) o sonho de todo político com grandes ambições. Mas, contaminada por um corporativismo estatizante pseudo-esquerdista tardio -quando o mundo há muito já estava jogando no lixo os seus "socialismos"- e desatualizado pelo processo de "globalização" da economia mundial, que se iniciara na década de 70, tem hoje o ingrato destino das idéias desnecessárias.
Quando o país voltou à plenitude democrática, em 1985, viu-se outra vez, como em 1945, diante de um monte de problemas e de um vácuo de idéias, engasgado com noções obsoletas. Era como se voltássemos ao flogístico, na física, ou à teoria dos miasmas, na medicina. Aplicamos os gabaritos mentais da máquina a vapor e telégrafo Morse ao avião a jato, à eletrônica e à energia nuclear. A Constituinte de 1988, à maneira de uma velha prostituta que tenta enganar a idade rebocando-se toda com batom, fez o Estado brasileiro ressurgir já velho e caduco, mesmo por comparação com 1946, e menos competente do que o regime de Getúlio. O Estado é o estado a que chegamos, como dizia o Aporelli.
Fernando Henrique teve uma dessas raras oportunidades históricas em que tudo se conjuga: o momento, o contexto, as possibilidades materiais, e a biografia do protagonista. Sua plataforma eleitoral constituiu um projeto racional, que as urnas endossariam. Era um ponto de partida para o necessário reequacionamento do Estado brasileiro. E o Congresso, nem sempre amável com presidentes que chegam com uma base partidária fraca (como foi o caso dos três eleitos diretamente nos últimos 30 anos -Jânio, Collor e o próprio Fernando Henrique), mostrou-se bastante bem disposto.
O governo revelou porém uma surpreendente capacidade de perder tempo e de tropeçar nas próprias pernas. Boniteza de discurso e pouca clareza de ação. Salvo pela continuidade do esforço antiinflacionário -sem dúvida uma prioridade correta-, não se avançou muito além de um "bandeide" fiscal (em que FHC incompreensivelmente vetou dispositivos destinados a defender o cidadão contribuinte contra violências exatórias). Fala-se, nos subterrâneos corporativos, em acabar com o sigilo bancário. Isso, neste país de "grampos" impunes, é o mais poderoso instrumento de intimidação política que se poderia pôr nas mãos de qualquer governo. Da reforma da Previdência, estamos mais longe do que há um ano -e mais perto da crise. FHC perdeu autoridade para disciplinar gastos públicos de estatais, Estados e municípios, ao conceder ao colega tucano, Mário Covas, o privilégio de pagar dívidas com ativos não rentáveis. É estranho que o Estado mais rico do país seja um grande protagonista da "cultura do calote".
É certo que a estabilidade da moeda se firmou como vontade popular, e nenhum político arriscaria provocar uma recaída. Acabou a demagogia anti-FMI e todo o velho besteirol. Sem assunto, o PT sobrevive de alcagetismo. Mas o grande desafio contemporâneo é repensar o Estado e as formas políticas que o ligam à sociedade. O mal-estar que se observa hoje nas grandes democracias não é coincidência. As pessoas passaram a se perguntar se o que lhes custa o Estado é compensado pelos benefícios que traz. Ninguém mais aceita submeter-se passivamente a uma intransitiva "volonté générale" estilo Rousseau. O próprio papel do Estado nacional está sendo reexaminado, e em alguns países foi inevitável a fragmentação.
O Estado, no Brasil, está à beira de uma falência geral dos órgãos. Para o público, tudo o que a ele se liga parece suspeito ou arbitrário. A principal franquia democrática -o controle dos gastos públicos- tornou-se pura ficção. E porque não há mais de onde tirar, este grande país está preso no círculo vicioso das taxas de juros punitivas e do câmbio sobrevalorizado (não compensado por medidas estruturais de redução do "custo Brasil"). Isso inviabiliza surtos de desenvolvimento como o do "milagre brasileiro" do fim da década dos 60 e o do "milagre asiático" de hoje. A esperança que nos resta é um choque de liberalismo através de desregulamentação e de privatização. Governo pequeno, impostos baixos, liberdade empresarial, respeito ao direito de propriedade, fidelidade aos contratos, abertura a capitais estrangeiros, prioridade para a educação básica -eis as características do Estado desejável: o Estado jardineiro. Este cria ambiente para que as plantas floresçam, ao invés de amarfanhar os canteiros com as falsas carícias do Estado Babá e os agressivos andaimes do Estado empreiteiro...

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