São Paulo, domingo, 18 de agosto de 1996
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A epopéia de uma língua

EDUARDO SIMANTOB
DA PUBLIFOLHA

No início foi o verbete. Há cerca de 25 anos, o crítico Otto Maria Carpeaux encomendou ao então professor de crítica teatral e editor Jacó Guinsburg a elaboração do verbete "iídiche" para inclusão na "Enciclopédia Delta Larousse".
O verbete virou a seguir uma tese de doutorado (1973) e, finalmente, transformou-se no mais completo panorama da cultura iídiche já publicado no país. "Aventuras de uma Língua Errante" traz uma série de ensaios maturados em mais de 20 anos e recompilados a partir de 1993 por razões até mais pessoais do que efetivamente literárias (leia crítica abaixo).
"Não tenho a pretensão de escrever a história da literatura iídiche, mas tive uma relação íntima com a língua. Vivi minha meninice e parte de minha mocidade dentro de um ambiente de esquerda, mas onde o iídiche tinha um papel fundamental", conta Guinsburg.
A tese oriunda do verbete original foi uma exigência da reforma do estatuto da Universidade de São Paulo, que havia incorporado a Escola de Arte Dramática, onde Guinsburg não poderia continuar lecionando sem título acadêmico.
"A dissertação foi feita às pressas, e eu fiquei muito insatisfeito, não só por causa das observações feitas pela banca". Uma banca que representa bem o caráter laico tanto da produção quanto da trajetória de Guinsburg, formada por Sábato Magaldi, Décio de Almeida Prado, Bóris Schnaiderman, o rabino Fritz Pinkuss e o orientador Antonio Candido.
Nascido na Bessarábia (hoje parte da Romênia) em 1922, Guinsburg chegou três anos depois a São Paulo, estabelecendo-se com sua família no bairro do Bom Retiro.
O Bom Retiro ainda não era um bairro eminentemente judeu, como viria a ser a partir dos anos 50, mas devido à proximidade com a Estação da Luz virou ponto privilegiado para o estabelecimento de imigrantes de variadas origens, especialmente italianos. E revolucionários dos mais variados matizes.
Judeu por herança, brasileiro por paixão, esquerdista por convicção, Guinsburg jamais cursou faculdade alguma, mesmo tendo sido professor da USP -o que faz a alquimia surpreendente dos seus livros, frutos dessa capacidade cada vez mais rara de combinar idéias claras com a disciplina dos "códigos acadêmicos".
Nessa nova obra, o olhar do autor acompanha a "carroça do judeu errante" pela Europa e as Américas, baseando sua estrutura narrativa em dois vieses distintos.
Um, que ele pontua como "diacrônico, vertical", aborda quadros de época e tece os contextos histórico-sociológicos em que se deterá ao analisar expressões individuais relevantes da cultura iídiche, aí, sim, seguindo uma via "sincrônica, horizontal".
Guinsburg parte das margens do Reno no século 10, quando nasce o iídiche, então "jargão das mulheres", e chega até o moderno Estado de Israel, ao movimento de retorno judeu à Terra Prometida após quase 2.000 anos de diáspora.
A história do iídiche transforma-se num quadro da vida judaica na Europa, destacando-se a caracterização das comunidades que se fechavam nos guetos urbanos da Europa Ocidental e nos "shteitls", ruas povoadas por judeus nos vilarejos rurais da Europa Oriental e Rússia.
Entender a cultura iídiche significa entrar naqueles casebres em que a fé numa tradição milenar era constantemente posta à prova por violentos "pogroms" e outros assédios anti-semitas, que culminaram no genocídio em escala industrial perpretado pelo nazismo.
O Holocausto condenou uma língua cujo futuro já era discutido pelos próprios judeus desde o início do século, quando os pioneiros do sionismo idealizavam a construção do moderno Estado judeu e a restauração do hebraico.
Soma-se a isso o êxodo dos sobreviventes e dos que fugiram antes da guerra para as Américas (a maioria), Austrália e África do Sul, onde as comunidades iídiches não conseguiram manter a língua por mais de duas gerações.
Ainda se fala iídiche entre os judeus ortodoxos, que não desejam usar para fins profanos a língua sagrada. Além disso, utilizam o iídiche para se diferenciar dentro da comunidade judaica.
Mas, como frisa o autor, "a cultura que esses ortodoxos produzem em iídiche é muito pobre; no emprego que eles fazem da língua há uma deliberação no uso que não havia anteriormente, pois antes o uso era espontâneo".
Triste ironia é verificar que uma língua que tanto se "globalizou" por sua trajetória errática, em plena onda de globalização ficou relegada aos bancos universitários.

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