São Paulo, domingo, 18 de agosto de 1996
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O retorno de Leminski

RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Melhores Poemas", de Paulo Leminski, oferece, de início, questão central de toda a crítica de literatura ou arte. Como um crítico ou antologista pode afirmar que tais e tais textos são de fato os "melhores poemas" de um autor? No caso, morto há pouco tempo e, por isso, não muito desvendado, embora conhecido talvez sobretudo por suas incursões no mundo da MPB: parcerias com Itamar Assumpção ou canção ("Verdura") gravada por Caetano Veloso -sim, poeta da música, para além do consumo, dos ismos e da própria música popular.
A questão torna-se ainda mais complexa quando se tem no horizonte que, com nitidez, a partir da queda do Muro de Berlim (ano da morte de Leminski, 1989), "verdades" (já antes questionáveis) artísticas e literárias foram -todas- relativizadas e, quase todas, datadas. Ao crítico ou ao antologista, o panorama histórico parece reservar apenas o lugar do ponto de vista -um ponto de vista, sob pena de se recair numa crítica de crenças canônicas, autoritário e pontificador. Estas ressalvas não podem entretanto afastar o exercício da crítica.
Fred Góes e Álvaro Marins não revelam, ao menos de modo claro, quais foram seus critérios de seleção no prólogo "Labirinto Sem Limites". Os critérios aparecem, num ou noutro comentário, deduzidos. A uma certa altura, dizem os antologistas: "Mesmo uma leitura superficial mostra o quão distante estava a poesia de Leminski da chamada poesia marginal". Ou: "...uma outra diferença a ser notada é o cuidado artesenal com a linguagem", para depois afirmarem ter ele Leminski um "traço barroco" em alguns de seus poemas, concluindo: "Se por um lado pode-se perceber aí uma evidente ressonância do concretismo, por outro, descobre-se que o autor traz para a poesia de sua geração um comportamento marcante do barroco -o caráter charadístico da composição...".
A introdução em si indicia as dificuldades da crítica literária no país. A afirmação mais paradoxal dos antologistas é, como se tivessem traçando a imagem de um político, a de que Leminski "absorveu criticamente e sem sectarismos todas as tendências poéticas de seu tempo e as apresentou convertidas pela voz da individualidade". Existe poeta sem individualidade ou sem trabalho com a língua? Seria Leminski um novo Drummond? João Cabral não tem também um traço barroco?
Enfim: parece não haver critérios "críticos" de seleção mais firmes e os comentários são, no mínimo, acanhados. De fato, a escolha (o ponto de vista) buscou os poemas mais "legíveis": temas claros, articulados de modo às vezes raso, um toque de humor, um "hai kai", com uma "sacada" quase publicitária.
Para mim, o Leminski menos estimulante. Quem pode ler com interesse hoje um poema como: "Entre a dívida externa/ e a dúvida interna/ meu coração/ comercial/ alterna". Ou o inconsistente "Dança da Chuva": "Senhorita chuva/ me concede a honra/ desta contradança...". No volume "Caprichos & Relaxos", no qual se encontram originalmente estas peças, há poemas -do meu ponto de vista- mais fortes, como "Contranarciso" ou "Nada que o Sol Não Explique", não selecionados.
O Leminski valorizado por esta escolha é o melopaico suave e mais óbvio, com sonoridade rebarbativa: "Bom dia, poetas velhos/ Me deixem na boca/ o gosto de versos/ mais fortes que não farei". Ou: "objeto/ do meu mais desesperado desejo/ não seja aquilo/ por quem ardo e não vejo". É o "romântico fracassado".
Como a antologia se intitula "Melhores Poemas", não há como não apontar as fraquezas de inúmeros textos nela estampados: "Esta vida é uma viagem/ pena eu estar/ só de passagem". Ou: "Amar é um elo/ entre o azul/ e o amarelo". Este um exemplo do "rimismo" gratuito do autor de "Catatau" (prosa, 1975).
Todavia, existem no volume poemas fortes, em que a coloquialidade, combinada com reflexão, não se dissolve em sons mecânicos como em: "Dois loucos no bairro/ um passa os dias/ chutando postes para ver se acendem/ o outro as noites/ apagando palavras ...". Ou em "apagar-me/ diluir-me/ desmanchar-me/ até que depois/ de mim/ de nós/ de tudo/ não reste mais/ que o charme", prenunciando e retratando uma época. Ou ainda em "o pauleminski/ é um cachorro louco...", em que o poeta se expõe com fúria e não com acenos de conciliação. E o contundente (as imagens não são flácidas): "pelo/ branco/ magnólia/ o azul/ manhã/ vermelho/ olha". Há também peças mais longas, bem realizadas, reflexivas (muitos dos poemas de Leminski são impulsivos e pouco trabalhados, inclusive "artesanalmente"): "Aviso aos náufragos", "Além alma" ou "Desencontrários", entre tantos. Um poema como "O Bicho Alfabeto" (1989), incluído, condensa o melhor Leminski. Sutileza e densidade: "O bicho alfabeto/ passa/ fica o que não se escreve". A palavra "bicho" significando animal, só.
Melhor que se publique Leminski (por favor, não o póstumo!) mesmo que, na escolha, os "melhores poemas" compareçam coadjuvados por peças muito discutíveis. O mérito deste volume é o de recolocar não só em circulação, mas também em discussão, a poesia (desigual) de um dos mais representativos escritores da geração do pós-guerra.

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