São Paulo, domingo, 18 de agosto de 1996
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A janela e o menino

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - A casa tinha um jardim e três janelas que davam para a rua. Duas ficavam fechadas, só se abriam aos domingos, ou em dias especiais. A outra dava para um aposento que era uma espécie de hall, não era sombrio como a outra sala que só se abria quando havia visitas, ou quando alguma coisa de extraordinário acontecia no mundo ou dentro da própria casa.
O menino descobriu a janela e a escolheu como seu lugar predileto. Podia ficar ali, era uma forma de estar metade protegido pela casa, metade envolvido com o mundo. Pelas manhãs, via passar o leiteiro, o homem que afiava tesouras e facas, os outros meninos que iam para a escola levando merendeiras -ele invejava as merendeiras dos outros meninos, imaginava o que elas continham. Um dia, quando crescesse, levaria sempre uma merendeira consigo.
Ao meio-dia, passava a leprosa que pedia esmolas. Tinha um lenço encardido em volta do rosto, escondendo o nariz deformado. O menino tinha pavor da leprosa, mas ficava fascinado pela pontualidade com que ela ia ao portão e apanhava a moedinha que o pai sempre deixava para ela, numa reentrância da grade.
À tarde, passava o sorveteiro. À noite, quando todos começavam a ir para a cama, passava o moleque vendendo amendoim torradinho, a lata que servia de fogareiro despejando fagulhas, luminosas como as estrelinhas de são João.
Era da janela que o menino via o mundo e dele participava sem se contaminar. O menino gostava, mas tinha medo da rua, do bonde que cortara a perna do seu Almeida, do homem que deu um tiro na mulher que o traira, da carrocinha de cachorro, dos mascarados do Carnaval.
Da janela, ele sabia de tudo, mas nada tinha a ver com ele. Como a baratinha que encontrou o dinheiro e foi para a janela, ele gostava de ficar ali, vendo a vida passar.
Um dia o menino cresceu, mas continuou na janela, até que alguém o chamasse para dentro.

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