São Paulo, domingo, 18 de agosto de 1996
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O imaginário baiano de Mario Cravo Neto

ANDREA FORNES

O fotógrafo Mario Cravo Neto teve uma agradável surpresa com seu filho Christian há alguns dias. Ele fez ampliações belíssimas das fotos do pai.
"As cópias de Christian saíram como se eu mesmo as tivesse feito. Nota dez. Fiquei honrado de saber que minha própria criança, que não é mais uma criança, pôde realizar esse trabalho. É um alívio saber que alguém vai copiar os meus negativos exatamente da maneira como eu gostaria quando eu não puder mais fazê-lo. Somos todos obcecados pelo perfeccionismo. Ninguém pode fazer melhor para o artista do que ele próprio."
Mario Cravo não possui assistente por uma questão de "despojamento", segundo diz, e até ter sido surpreendido pelo filho de 21 anos, que também é fotógrafo, tinha de executar a maçante tarefa de reproduzir as imagens infinitas vezes. "As pessoas adquirem sempre as mesmas fotografias", diz o artista de 49 anos, considerado o mais brasileiro entre os fotógrafos daqui pela revista francesa "Photo", em sua edição de abril, especial sobre o Brasil. Ele se considera, no entanto, mais baiano do que brasileiro.
Herança familiar
Ao mencionar com orgulho a proeza de Christian, o fotógrafo admite ter havido o que chama de defasagem na educação de seus filhos mais velhos, Christian e Lua Diana, porque quando ele se separou da mulher (dinamarquesa), os dois ainda eram pequenos. "O enriquecimento educacional das crianças se perdeu com a separação. Eu nunca ensinei muito ao Christian, de forma didática e pragmática. Nunca incentivei meu filho a fazer fotografia. Ele aprendeu sozinho. Talvez isso passe genética ou espiritualmente de geração para geração."
E o artista entende bem de herança familiar: recebeu do pai, o escultor Mario Cravo Júnior -a quem se refere carinhosamente como "o velho"-, a influência que o fez se dedicar no início da carreira, aos 17 anos, à escultura ao mesmo tempo em que começava a desenvolver paralelamente a linguagem fotográfica.
O trabalho de Mario Cravo, como escultor e fotógrafo, sofreu uma guinada em meados dos anos 70, após o retorno de uma temporada na Alemanha (Berlim) e nos Estados Unidos (Nova York).
Em março de 1975, o artista foi vítima de um acidente de carro na Bahia que causou fraturas expostas nas duas pernas e o deixou imobilizado, na cama, por um ano.
"Como passei esse período deitado, um ano entrevado, precisei de mais outro ano para voltar a me locomover. Foi assim que decidi começar a fotografar em estúdio. Nunca tinha feito isso antes do acidente, só trabalhava na rua. Iniciei a fase que chamo de 'o fundo neutro e meus personagens'."
O "fundo neutro"
No período de convalescença ele geralmente selecionava entre pessoas que lhe visitavam as que iriam posar: amigos, vizinhos e familiares. Esse fundo, uma lona de caminhão velha e desbotada, é utilizado até hoje e pode ser visto pendurado no estúdio que o artista montou no quintal de sua casa em Castelo Branco, Salvador, onde mora com a mulher Angela e os filhos Lukas e Akira, de sete e quatro anos.
Foi originada durante essa fase do "fundo neutro" uma das obras que o artista considera mais importantes de sua carreira, o ninho de passarinho colocado contra a tal lona. Um dos filhos de Mario Cravo avistou um ninho branco em cima da árvore, no quintal de casa. Os passarinhos tinham tirado fibra de vidro (material que o artista utilizava nas esculturas em acrílico) de seu ateliê e misturado com palha para fazer o ninho.
"Os passarinhos já tinham se apropriado do meu trabalho antes que eu me apropriasse do trabalho deles, como se fosse uma criação de Marcel Duchamp, que costumava desvincular os objetos de sua realidade. Eu deixei de lado o que estava preparando originalmente para a 11ª Bienal Internacional de São Paulo e apresentei o ninho como meu projeto."
Mario Cravo costuma se inspirar em objetos, personagens e situações que têm a mesma simplicidade de um ninho de passarinho. "Gosto de trabalhar com coisas que são próximas da minha vida, do meu cotidiano, por isso não é um trabalho racional e especulativo. É de cunho mais emocional, sobre coisas que acontecem em minha própria vida."
Simplicidade
Algumas de suas "stage photographies" mostram, em close, um franzir de testa de sua mãe (Lúcia, 1993), a barriga de grávida de sua segunda mulher ao lado de um cachorro (Angela e Lukas, 1988), as mãos e os olhos de seu pai (Mario Cravo, 1993) ou o rosto de seu filho sendo amamentado (Akira, 1992).
"O meu trabalho não tem nada de modismos ou contextos internacionais. É a busca do meu desenvolvimento psíquico, tem muito a ver com a minha procura espiritual e o estágio que eu gostaria de alcançar, o desprendimento das coisas materiais. É por isso que eu faço questão de mostrar a carga emotiva dos retratados, muito mais do que a simples representação facial deles."
Para Mario Cravo, 50% do que ele fotografa estão dentro dele, os outros 50% restantes podem ser encontrados do lado de fora. "O artista tem de ter dentro dele aquilo que quer expressar", afirma entre um gole de café e outro. A bebida assim como os banhos frios são fonte da disposição para enfrentar turnos de trabalho de manhã até a noite.
Influências
O aspecto emotivo, diz ele, aproxima sua obra à do fotógrafo e etnógrafo Pierre Verger, morto em 11 de fevereiro passado, aos 93 anos. Mario Cravo teria sido a última pessoa capturada pelas lentes de Verger, durante encontro entre os dois promovido pela Folha.
Ambos revelam nas fotos em preto-e-branco de religião, rituais e raça as cores da Bahia. "Sábio e artista, Pierre Verger sabia tudo sobre a África e o Brasil - baiano exemplar, nos engrandeceu e iluminou", escreveu Jorge Amado na "Photo".
Sobre a sua maior influência, Mario Cravo acrescenta: "Verger sempre se considerou um documentarista. Nunca se achou um artista. Talvez por causa disso só tenha questionado no final da vida a magnitude que hoje pode ser vista em sua obra. No início, não encarava sua produção como obra de arte e sim como trabalho antropológico."
Verger ocupa o lugar sagrado de mestre. Mas além dele, Mario Cravo preza também fotógrafos como Peter Witkin, Sally Mann, Diane Arbus e Miguel Rio Branco. Recusa qualquer relação que se queira estabelecer entre as fotos de sua autoria e as de Robert Mapplethorpe. "Não é só porque nós retratamos o corpo que nossos trabalhos podem ser comparados. As fotos dele mostram a realidade gay nova-iorquina e o meu trabalho tem a ver com uma realidade tropical e com a natureza."
Os personagens
Os homens de Mario Cravo, quase sempre negros, exibem seu torso nu contrastando com aves, peixes e pedras. O cenário pode ser o fundo neutro do estúdio do fotógrafo ou um lugar qualquer da Bahia. Suas fotos revelam sensualidade, mas não têm o apelo explicitamente sexual que aparece nos clics de Mapplethorpe.
Mario Cravo é extremamente exigente na hora de escolher quem enquadra com sua câmera. Já fotografou Carlinhos Brown para a capa do disco "Alfagamabetizado" e, no momento, deve estar finalizando a capa do próximo disco de Daniela Mercury.
"São ambos personagens daqui (da Bahia), pessoas que estão à procura das mesmas coisas que eu. O que Carlinhos Brown faz com o ritmo eu posso fazer com minhas imagens."
Ao mesmo tempo, está organizando um livro sobre a Bahia com fotografias coloridas. Não será a primeira vez que o fotógrafo terá um livro seu editado em cores. Antes dele saiu "Exvoto", de 1986, mostrando objetos esculpidos e moldados, exemplos de arte popular brasileira, que são oferecidos como retribuição a uma graça alcançada. É o que no sertão se conhece como promessa ou milagre.
Se não há identificação com as pessoas que passam por suas lentes, Mario Cravo não pensa duas vezes para recusar trabalhos comerciais. Os trabalhos comissionados, como ele define, são os realizados "fora dos momentos de solidão e de sofrimento do artista". Quando foi convidado para fazer uma capa de revista com Adriane Galisteu, disse não.
"Se eu realmente retratasse a modelo como a vejo eles jamais publicariam. Seria como um dos personagens grotescos e mórbidos de Witkin. Depois que eu vi o tipo de imagem vulgar que ela transmite, como nas fotos de J.R. Duran (publicadas pela "Playboy"), tive a certeza de que não daria para fotografá-la. Se expor ali é se expor ao ridículo. Não posso fazer um trabalho que não me toque, que eu não admire. Como foto não existe, mas vende. Se fosse chamado para fazer uma foto do Senna teria aceitado com o maior prazer."
Projetos
Assim como uma foto do piloto, a lista de Mario Cravo das coisas por fazer é longa. "Tudo o que não fiz ainda tenho vontade de fazer", diz.
Para ele, a produção de um artista deve ser avaliada pelas coisas que já foram feitas e também pelas que não puderam ser feitas. "Alguns projetos eu consegui concluir, outros ficaram só no sonho. Acho isso positivo porque enquanto o artista tem capacidade para sonhar quer dizer que está vivo. A sua força e potencialidade está também nas coisas que ele não chegou a realizar, elas continuam sempre vivas e como um objetivo a ser alcançado. Se conseguíssemos concluir tudo não haveria ambições nem continuidade".

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