São Paulo, segunda-feira, 19 de agosto de 1996
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O canto da sereia

GUIDO MANTEGA

Infelizmente, as disputas eleitorais estão se transformando cada vez mais em campanhas publicitárias em que, da noite para o dia, anões são transformados em gigantes, e os embusteiros de ontem são travestidos em heróis nacionais.
Num passe de mágica, o currículo do candidato vai para o segundo plano e é substituído pela habilidade do publicitário que ganha sua conta. Ao se acentuar essa tendência, não teremos mais uma disputa entre o candidato A, B ou C, mas sim entre Nizan Guanaes, Duda Mendonça, Celso Loducca e os demais magos da comunicação.
Esse empobrecimento da vida pública é facilitado pelo avanço do domínio das imagens sobre a vida do cidadão. Centenas de canais de televisão e milhões de monitores soterram o pobre espectador numa avalanche de informações mal digeridas, com conteúdo ideológico bem definido e monitorado pelas grandes cadeias de comunicação.
E ainda vendem a ilusão do arbítrio do espectador "interativo", que possui a faculdade de escolher entre os três filmes que a Globo lhe oferece toda a noite. Não foi somente devido à crise dos partidos tradicionais que o empresário das comunicações Berlusconi conseguiu chegar a primeiro-ministro da Itália. Até a campanha do morto-vivo Boris Ieltsin foi impulsionada por um pool internacional de telecomunicações. Sem ir muito longe, aqui no Brasil tivemos recentemente o fenômeno Collor, que contou também com forte barragem promocional.
Nunca foi mais válida aquela velha máxima de que mais vale a versão do que o fato. Hoje em dia, a mulher de César não precisa ser honesta, basta parecê-lo. Essa mistificação é agravada pela dificuldade para avaliar a ação do Estado e a responsabilidade das várias esferas do poder público em certas áreas de atuação.
Pouco importa, então, se Luiza Erundina duplicou a quantidade de leitos hospitalares em São Paulo (de 600 para 1.250) e inaugurou o maior número de hospitais (foram cinco) de toda a história da prefeitura numa só gestão. O seu sucessor, Paulo Maluf, que não acrescentou um só leito e não abriu nenhum novo hospital, leva a fama de paladino da saúde porque inventou o PAS, um empreendimento que fala mais alto ao imaginário do cidadão, hoje dominado pela ideologia neoliberal.
O PAS agrada, não pelo seu desempenho, mas pela sua imagem de privatização e eficiência. Como boa parte dos paulistanos não pisa nos hospitais municipais ou não distingue um hospital municipal de um estadual ou federal, faz o seu julgamento a partir da imagem que lhes é vendida. Ignorando que o PAS marginaliza as internações hospitalares mais sérias e a saúde mental do município.
O mesmo se aplica também à atuação em educação e em assistência social. Fica minimizado o fato de que Erundina ampliou o número de vagas nas escolas municipais, diminuiu a repetência para 8% ao ano e, a evasão escolar, a seus menores índices históricos.
Enquanto Maluf fez uma política de terra arrasada no setor, retornando aos níveis de repetência do passado, de 18% ao ano. Como uma boa parte do eleitorado paulistano não distingue claramente uma escola estadual ou municipal, tem dificuldade para avaliar as escolas da prefeitura. Além disso, a saúde e, principalmente, a educação só vão mostrar seus efeitos a longo prazo, enquanto as grandes obras viárias surtem efeito imediato, independente de sua eficácia.
O exemplo mais gritante dessa distorção publicitária é o projeto Cingapura, que ganhou a fama de solução para a falta de moradias em São Paulo, com míseras 3.500 unidades entregues em quatro anos de gestão, plantadas em locais estratégicos. Foram tantas as vezes que esses poucos apartamentos de Maluf apareceram em jornais, outdoors e televisão que deixaram a impressão de que o atual prefeito construiu muito mais do que as 28.464 casas entregues por Luiza Erundina.
Mas nem sempre a mistificação leva a melhor. Basta tapar os ouvidos aos cantos das sereias que proliferam no período eleitoral e abrir bem os olhos diante da informação fácil e superficial para impedir que uma nova leva de aventureiros tome conta de algumas prefeituras brasileiras.

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