São Paulo, quarta-feira, 28 de agosto de 1996
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Um destino comum

RODOLFO KONDER

O rio da Prata acaricia Buenos Aires, a elegante e sensual Buenos Aires, com suas ruas largas e arborizadas, antes de seguir caminho na direção de Montevidéu e do estuário para mergulhar suavemente no Atlântico.
Ele se detém, apaixonado, diante da cidade azul, praças alegres e avenidas movimentadas, cafés tradicionais, modernos centros de comércio, livrarias, museus, teatros, as ruas parisienses da Recoleta. Junto ao Puerto Madero, o rio observa os restaurantes alinhados, de excelente comida, os guindastes que ficaram como marcas de outros tempos, dinossauros transformados em peças de decoração, e as pessoas que namoram e se debruçam sobre suas águas turvas, nas madrugadas sem medo e sem violência.
Na região central de Buenos Aires, pode-se caminhar com tranquilidade pelas ruas Lavalle, Maipu, Florida, Esmeralda, Suipecha, há ali lojas de todos os tipos, uma antiga estação ferroviária que agora se chama Galeria Pacífico e funciona como "shopping center", a Confeitaria Ideal, o café Richmond, o conhecido Tortoni.
Não se dorme nessa gentil, doce e sonhadora cidade. Um "cortado" na Biela, um sorvete no Freddo, a sombra de árvores seculares, o túmulo da família Duarte no cemitério onde repousa Eva Perón, perto do Design Center e do Café de la Paix. O rio da Prata beija a vaidosa capital argentina e desce até Montevidéu.
As praias de Montevidéu às vezes são banhadas pelas águas salgadas do Atlântico Sul, às vezes pelas águas doces do rio da Prata, dependendo dos ventos e das marés. Na avenida 18 de Julho, o minuano varre as escadarias da Plaza de la Independencia, nessa cidade discreta e civilizada. Mais no interior do continente, já em terras paraguaias, Assunção, embora a menor e mais pobre das três capitais dos nossos parceiros do Mercosul, também seduz os visitantes com a sua cordialidade.
O Mercosul, oficializado em janeiro, amplia nossos horizontes e nos torna donos de Buenos Aires, Montevidéu e Assunção. Buenos Aires já não cabe somente na alma dos argentinos, Montevidéu não é mais exclusivamente dos uruguaios, Assunção não pertence apenas aos paraguaios.
Essas cidades também são nossas, como agora fazem parte da nossa literatura gigantes como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Ernesto Sábato e Augusto Roa Bastos. O surgimento do Mercosul nos faz mais criativos, mais heterogêneos, mais ricos, mais diversificados.
A Prefeitura de São Paulo definiu o Mercosul como sua prioridade externa, desde 1993. Mas sabia que um projeto de caráter comercial, na melhor das hipóteses de caráter econômico, seria vulnerável e não atravessaria as portas do tempo. Assim, decidiu investir na criação do Mercosul Cultural.
Por meio da Secretaria Municipal da Cultura, realizou a mostra "Integração do Cone Sul", com obras de 32 artistas argentinos, uruguaios e paraguaios; montou a "Semana do Cinema Argentino"; trouxe a São Paulo a Orquestra Filarmônica de Buenos Aires, que se apresentou no Teatro Municipal e no parque Ibirapuera; organizou o "1º Encontro de Escritores do Mercosul"; exibiu o Coral do Teatro Colón, com a nossa Orquestra Sinfônica e o nosso coral; trouxe ainda o Balé do Teatro Colón e a Orquestra de Tango de Buenos Aires.
Agora, durante 45 dias, está promovendo 123 eventos, com a participação de mais de 400 artistas argentinos, uruguaios, paraguaios e brasileiros, no Centro Cultural São Paulo, dentro do projeto "Mercosul Cultural". Somos hoje, de fato, a capital cultural do Mercosul.
Os barcos da história, que feriram pela primeira vez nossas terras com suas quilhas, chegaram pelo mesmo rio agitado da grande aventura da conquista. As mesmas espadas, as mesmas armaduras e a mesma pólvora estão lado a lado com nossa arquitetura, nossa religião e nossa mitologia, na dilacerada memória da região.
Mais recentemente, todos atravessamos períodos de trevas, anos de angústia e autoritarismo, defrontamo-nos todos com os fantasmas da repressão, do "desaparecimento" e da tortura. Agora procuramos nos libertar das redes de pedra que ainda nos cercam para executar a árdua tarefa de construção da democracia.
São muitos, na verdade, os pontos de convergência, os laços que nos unem. E o Mercosul é o nosso caminho comum para o mundo desenvolvido, a economia globalizada. É o nosso destino, como decretaram a geopolítica e os deuses. Devemos persegui-lo com tenacidade, acima e além de intrigas menores e divergências secundárias, porque ele é o nosso futuro, solidário e indivisível.

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