São Paulo, sexta-feira, 30 de agosto de 1996
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Contra a servidão

A "modernidade" impõe o retorno dos laços de vassalagem como forma de resolver o desemprego
SANDRA STARLING
O deputado Odelmo Leão, líder do PPB, comentou nesta Folha, edição de 12 de agosto último, um projeto de sua autoria que altera as normas reguladoras do trabalho rural. O parlamentar lembra, na justificação da proposição, que era costume no campo o empregador rural fornecer a seus empregados, além do salário legal ajustado, moradia com infra-estrutura básica, leite, carne, ovos, cereais para complemento das necessidades do trabalhador e de sua família.
Atualmente, ainda segundo o nobre colega, "esse procedimento já não é habitual como tempos atrás, pois nas rescisões trabalhistas, principalmente em ações trabalhistas, uma vez confirmados, esses fornecimentos ou benefícios indiretos passam, por decisão judicial, a integrar o salário, o que causou o êxodo rural".
O argumento do deputado poderia ser válido antes da edição da lei nº 5.889/73. Mas, desde então, é absolutamente improcedente, porque nessa lei há norma específica que torna inaplicável a teoria do salário "in natura" do art. 458 da CLT. É sabido que moradia e alimentação só podem ser caracterizadas como parcelas salariais se verificado o preenchimento simultâneo de três requisitos: habitualidade, ausência de ônus para o empregado e que a utilidade não seja instrumento de viabilização do trabalho.
Ora, de acordo com a alínea "a", seguinte ao "caput" do art. 9º da lei nº 5.889/73, é lícito o empregador rural descontar da remuneração de seu empregado até 20% do valor do salário mínimo pela ocupação de moradia; e, de acordo com a alínea "b", até 25% do valor do mínimo legal pelo fornecimento "de alimentação sadia e farta". Logo, se a lei prevê a onerosidade para o trabalhador, a utilidade não emerge como contraprestação pelo serviço prestado, deixando de ter, assim, caráter salarial.
Mesmo que se suprimissem tais ônus para o empregado (o que, diga-se de passagem, o projeto não prevê), a moradia, ainda assim, pode ser admitida como instrumento de viabilização ou pressuposto fático à própria realização do trabalho, na medida em que, normalmente, a labuta no campo começa antes do galo cantar. Isso reforça a inaplicabilidade da teoria do salário "in natura" nas atividades rurais mediante vínculo empregatício.
Por tais argumentos, vê-se que essas parcelas não compõem, já pela atual legislação, a remuneração do empregado rural. E, segundo a boa técnica legislativa, disposições desnecessárias devem ser evitadas, em prol da concisão do texto legal. A não ser que tão "dadivosa" proposta procure acobertar outra prática.
De fato, o único efeito concreto da inovação pretendida pelo líder do PPB -a cessão "graciosa" de algo que talvez nem sequer possa ser rotulado de moradia ou merecer a qualificação de "alimentação sadia e farta"- será, em tempos bicudos de desemprego, o fazendeiro oferecer ocupação a famílias inteiras em troca de um cômodo de adobe, um prato de comida e uma soma mixe de dinheiro (tão somente para o pai) como contraprestação salarial.
Paradoxalmente, a "modernidade" impõe a restauração dos laços de vassalagem como forma de resolver o grave problema do desemprego. E, como Chico Buarque já teve oportunidade de cantar, "por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir, Deus lhe pague".
Aprovado no Senado Federal, esse projeto encontra-se agora nas mãos do presidente da República para apreciação. Sancionando-o, o "príncipe da sociologia" estará rendendo suas diletas homenagens aos donos das sesmarias dos tempos modernos e renovando sua servidão à casa grande.

Sandra Starling, 52, é deputada federal pelo PT de Minas Gerais, líder do partido na Câmara dos Deputados e professora titular licenciada do Departamento de Sociologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

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