São Paulo, quarta-feira, 4 de setembro de 1996
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Financiamento da saúde

DALMO DE ABREU DALLARI

A questão do financiamento dos serviços públicos de saúde tem sido objeto de farto noticiário e de comentários pretensamente técnicos, que demonstram, para um leitor mais informado, que o assunto vem sendo tratado com muita imprecisão e malícia.
Não fica claro se por ignorância, leviandade ou por adesão a um privatismo simplório ou de conveniência, mas o fato evidente é que se tem defendido como solução ótima o sistema rotulado de Plano de Atendimento à Saúde (PAS), implantado em São Paulo em caráter precário, com várias denúncias de inconstitucionalidade pendentes de decisão judicial.
O argumento mais usado em favor do PAS é que ele vai aliviar as dificuldades financeiras do Estado, pois este passa a gastar menos com os serviços públicos de saúde, destinados, basicamente, à população pobre.
Além de ser antidemocrático e favorável ao exercício arbitrário do poder -e, só por isso, já tremendamente contrário ao interesse público-, o desprezo pela Constituição vigente, feita com ampla participação popular, vem acompanhado, no caso do PAS, de uma profunda contradição e contém grave injustiça.
Como tem sido amplamente noticiado, o PAS consiste na entrega de serviços públicos de saúde, inclusive de imóveis e equipamentos, a cooperativas de profissionais da saúde, que são entidades de natureza privada.
Essas entidades privadas recebem os serviços e os bens públicos sem a licitação expressamente exigida pela Constituição, no artigo 37, inciso XXI. Tais cooperativas, formadas por cópia do modelo das cooperativas de táxis, apresentam um vício fundamental, público e notório: servidores municipais da saúde são obrigados a se associar como cooperados, sob pena de serem punidos com sua remoção para os bairros mais distantes da cidade ou para setores que nada têm a ver com suas respectivas especialidades.
Essa remoção punitiva dos servidores, por não se associarem ao PAS, configura abuso de poder e contém várias inconstitucionalidades manifestas: em primeiro lugar, diz a Constituição, no artigo 5º, inciso XX, que "ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado", sendo, portanto, inconstitucional a formação das cooperativas mediante coação aos servidores; além disso, a Constituição estabelece, no inciso II desse mesmo artigo, que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", não existindo nem podendo existir uma lei que obrigue um servidor a ingressar numa cooperativa.
Não bastasse isso, a remoção punitiva dos servidores, nesse caso, é abuso de poder e afronta os princípios da legalidade e da moralidade que devem reger a administração, como expressamente exige a Constituição no artigo 37 "caput".
Além disso tudo, o PAS está sendo gerido de modo inconstitucional, por não assegurar o atendimento integral, previsto no artigo 198, II, da Constituição. É público e notório que, para aumentar os lucros (apelidados de "sobras") dos cooperados, o PAS não atende a casos de doenças cujo tratamento é caro, como é o caso da Aids, além de exigir o prévio cadastramento dos usuários.
Os defensores do PAS estão mandando a Constituição às urtigas, sob pretexto de reduzir os ônus do Estado. Entretanto nenhum desses solertes economizadores do dinheiro público jamais condenou o abatimento do total das despesas médicas, previsto na legislação do Imposto de Renda. Quando se faz o abatimento, é dinheiro público que está sendo entregue a um particular. E nesse caso o que se tem, na realidade, é o financiamento integral, pelo Estado, da medicina de luxo.
Basta lembrar que a madame que faz uma cirurgia estética para disfarçar os sinais de envelhecimento, ou a dondoca que usa os serviços médicos porque quer um narizinho arrebitado, ambas receberão do Estado o benefício do abatimento total das despesas médicas em suas respectivas declarações de rendas. Desse modo, também as pessoas de renda modesta, cujo cuidado de saúde os defensores do PAS consideram um desperdício de recursos, estarão financiando, com o dinheiro que o Estado deixa de arrecadar, a medicina de luxo.
Não há inconstitucionalidades convenientes. Quem tiver um mínimo de conhecimento de história sabe que, desde o final do século 18, ou se tem o respeito às normas constitucionais ou se tem o arbítrio, que é fonte de desordem e de injustiças.
Se alguém com um mínimo de consciência democrática e noção de respeito pelos direitos individuais, sociais e coletivos estiver contra o sistema de saúde previsto na Constituição, por estar sinceramente convencido de que o Estado não deve financiar serviços de saúde, deverá, honestamente e com coerência, propor um debate público e amplo do assunto. A imposição arrogante e arbitrária de uma solução inconstitucional, sob argumento da conveniência, é típica da "razão de Estado", que é a razão das ditaduras.

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