São Paulo, quinta-feira, 5 de setembro de 1996
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Castelos de areia

OTAVIO FRIAS FILHO

O mundo comemora o centenário de Antonin Artaud (1896-1948), ou melhor, quem comemora são as pessoas fora do mundo, as que se interessam por poesia e teatro, que vão a debates sobre o tema. Apesar (ou por causa) do empenho de Artaud em transformar o teatro numa forma de vida, o abismo só cresce, o teatro é uma espécie de museu.
O impacto do cinema na literatura foi o mesmo que a fotografia teve nas artes plásticas. O interesse das pessoas é galvanizado pelos meios técnicos capazes de narrar de modo mais vívido, mais "real", que os meios tradicionais. Estes ficam falando sozinhos, na tentativa de "construir" um assunto que já não são convincentes em representar.
Por isso a arte moderna é para iniciados, exige um consumidor-especialista, gera uma cultura que é mais crítica do que artística. No esforço para fugir do dilema, Artaud derrubou a separação entre palco e platéia, pretendeu fazer do teatro uma experiência ainda mais vital que o cinema, algo só comparável, digamos, a um acidente de automóvel.
Artaud é o inspirador de todos esses espetáculos que assustam o público, onde o espectador é insultado, molhado, esbofeteado, enquanto os atores dão gritos primais e se contorcem, na expressão da crítica Bárbara Heliodora, como "amebas malucas". As peças de Artaud estão esquecidas, o que ficou não é uma obra, mas um estilo.
Embora tenha escrito muito, ele alegava extrema dificuldade para escrever, como se sua impotência refletisse o esvaziamento da arte pela tecnologia, a ser compensado por um ato de força física, desesperada, demente. Quase ninguém lê ou encena Artaud, mas qualquer aluno de arte dramática já está, mesmo sem saber, sob a influência dele.
O paradoxo é que a atitude transgressiva -francês, ele estava na confluência entre marxismo e surrealismo- desenvolvida por Artaud nos anos 20 e 30, com o ímpeto de destruir convenções, persiste dos 60 até hoje como cânone sagrado do teatro, ou pelo menos de qualquer teatro que não seja meramente recreativo.
Só que o choque almejado por Artaud, a catarse do novo teatro, não choca mais ninguém: o público boceja enquanto os atores simulam orgias tremendas no palco, ou melhor, no "espaço cênico". A crise da arte moderna é resultado, aliás, da incapacidade do público para se chocar. Daí a tendência regressiva, melancólica, do pós-moderno.
A obra de arte é consequência da repressão, que ela ao mesmo tempo expressa e supera. Sem repressão -sexual, moral, religiosa- toda arte desmancha como um castelo de areia. Não que as obras desapareçam. Pelo contrário, há obras em excesso, gêneros para todo gosto, estilos em profusão, mas seu propósito é cada vez mais decorativo, ambiental.
Já não existem antes e depois, pró e contra, mas uma simultaneidade de opções a girar, indiferentes. É o que chamam de fim da história. E seria preciso ser um pouco maníaco para recusar os confortos de hoje a fim de recuperar a sensação de que o tempo passa, para trocar a liberdade de viver pelos tesouros enterrados no passado.

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