São Paulo, quinta-feira, 5 de setembro de 1996
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De onde vem o novo

CANDIDO MENDES

Neste setembro, há que pensar à frente do processo político brasileiro, baixado às expectativas do pleito municipal e ao curare do imobilismo -de que só saímos para debater a reeleição. Não se aguarde mais o grande estrépito da mudança da Carta, que o tempo é da mudança miúda -quase invisível.
"Desconstitucionalizemos" torna-se a palavra de ordem, buscando no sorrateiro da lei ordinária o que se queria obter de uma Lei Magna, modelo para o país inaugurado com FHC. Nem pode, por outro lado, o governo bater de novo o bumbo do sucesso do Real; como efeméride já, do nosso passado, que cumpre reverenciar, como a abertura dos portos e a abolição da escravatura.
Nesse quadro de quietudes e rasíssimos horizontes, como vai a proposição das alternativas do neocapitalismo? De onde vem o novo? Há que cobrá-lo do PT, bem como do tucanato, que se esqueceu das responsabilidades da social democracia e põe hoje todos os seus ovos programáticos no ninho pefelista.
Numa espécie de história em marcha à ré, parece ser a nossa sina política a de o PSDB dar conta do programa do PFL, e o PT, chegando ao poder, desincumbir-se da social democracia. É o que revela, hoje, como partido diferente, que pela primeira vez tem dois governadores, no Espírito Santo e em Brasília, reforçou a sua experiência em municípios-chave e levou ao Congresso preocupações com as tensões entre capital e salário, neste célere mundo das globalizações.
A crise estrutural do trabalho não é de perdas, agora, do salário para este recuperar-se mais adiante, garantido pela boa fada madrinha da tecnologia. O futuro, a médio e a longo prazo, da globalização e do jogo da produtividade vai depender de uma atribuição básica de renda, por fora do que caiba à remuneração do capital como a viram as teorias clássicas do marxismo e do neocapitalismo.
O senador Suplicy já antecipou a matéria entre nós no seu programa nacional de renda mínima, que, em boa hora, agora o governo começa a estudar.
Um tucanato verdadeiramente debruçado sobre a garantia de um mínimo de Estado de bem-estar -o "welfare" enunciado e repetido por FHC- já se teria sensibilizado aos riscos de uma economia de mercado hegemônico, a conviver com salários irrisórios, forçando a concentração de todos os braços da família, para manter-se à tona da subsistência.
O governador Cristovam Buarque conseguiu hoje reter a infância no ensino primário, pagando aos pais para manter os filhos na escola e suprindo a parcela das crianças no magérrimo orçamento doméstico. Coube também ao PT de 96 defender a tese fundamental da funcionalidade do dispêndio público, preservando o Estado para as suas atividades indispensáveis ao desenvolvimento.
Vitor Buaiz enfrenta no seu Espírito Santo a contradição entre as aplicações produtivas do aparelho governamental e sua imobilização para o pagamento do funcionalismo, que consome, afinal, R$ 75 milhões dos R$ 76 milhões do orçamento capixaba. Tradicionalmente, as esquerdas condescendem nesse tratamento estatutário do trabalho, visto como compensação para a prática enraizada dos modelos oligárquicos e predatórios do salariado na nossa vida econômica.
Aumentando drasticamente o funcionalismo público ao início do governo, Buaiz nos dá hoje a firme determinação, à custa da popularidade fácil, de romper com qualquer visão corporativa do dispêndio público. Seu remédio -ou alternativa- não é a privatização radical e implacável, mas a defesa das tarefas de um Estado produtivo, detentor, sempre, de "uma reserva estratégica" para manter a iniciativa do processo de mudança.
É entretanto no campo das administrações municipais que o novo hoje vem para ficar, por meio dos orçamentos participativos. Tarso Genro consolidou, na sequência de Olívio Dutra, em Porto Alegre, o princípio de fazer do pagador de impostos quem decide a destinação última das verbas da prefeitura, fixa o seu montante e fiscaliza a aplicação.
A prática se espalhou pelo país, a partir de alcaides petistas e da criatividade de alguns tucanos, como Paulo Hartung, em Vitória. Dispomos já de um princípio de verdadeira "cidadania ativa", associada ao resgate da democracia direta, quando o fim do século traz aos capilares da nossa federação as ágoras clássicas, do povo na praça, de Péricles ou Alcebíades. É o que se vê na Belo Horizonte de Patrus Ananias e na Santos de David Capistrano, chegando à incisiva consciência ecológica de seus munícipes.
O "social" não explicita afinal o papel do Estado na tarefa estrutural, assistencial, furtivo ou envergonhado, na interpelação mínima de quem votou no genuíno PSDB. Vai o tucanato, entoando a cantiga da reeleição, deixar cair do bico as promessas do novo hoje no Brasil em bem do único partido que se quer decididamente diferente? Vai converter-se de vez à social democracia ou se espantará, como o burguês gentil-homem de Molière, de fazer petismo sem o saber?

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