São Paulo, domingo, 8 de setembro de 1996
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As várias faces do vazio

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ninguém formulou melhor o impasse que acompanhou Beckett em seu prolongado esforço criativo do que o próprio autor. A crise moderna da narrativa é a "expressão de que não há nada a expressar, nada com que expressar, nenhuma capacidade de expressão, nenhum desejo de expressão, junto com a obrigação de expressar" (1). No caso particular do romance, estamos às voltas com o esgotamento de modelos (o realismo formal que Defoe, Richardson e Fielding inventaram e Flaubert, Stendhal e Balzac elevaram à condição de arte) e o esvaziamento dos conteúdos (o exame em profundidade do sujeito, da consciência individual deixou de valer o esforço).
Absolutamente fiel a seus temas (a miséria e a solidão humanas -"meu assunto é o fracasso"), infiel aos gêneros (levou aos limites expressivos o teatro e a prosa, mas também era ensaísta e poeta de importância), Beckett trocou a prosa alusiva e virtuosística, joyceana, da juventude (por exemplo, de "Murphy", romance do qual o autor de "Ulysses" recitava passagens de memória) pela prosa do menos, analítica e econômica, sintática e semanticamente, dos anos de maturidade. Esta virada estilística -cujo ponto alto são os anos parisienses do pós-guerra, que originaram a trilogia "Molloy", "Malone Morre" e "O Inominável"- espelha-se no abandono provisório da língua materna. No empenho de calar os ecos e cacoetes associados ao inglês, segunda natureza, Beckett, passou a escrever na língua de Racine e Chateaubriand, mantendo a dupla cidadania linguística até o fim de seus dias.
Tome-se como exemplo da prosa beckettiana "Molloy", romance cujo personagem-título é um narrador perplexo e um indivíduo em crise solitária, um texto sobre a agonia e a consciência deste processo, que, na primeira parte, assume a forma de um diário íntimo. O enredo, rarefeito, poderia ser descrito como um esforço retrospectivo de recompor um percurso, um exercício de memória, portanto, em que Molloy busca recontar os caminhos que o levaram até o seu estado presente. A situação inicial, intrigante e lacunar, estimula a curiosidade do leitor: Molloy é um velho decrépito, solitário e doente, confinado a um espaço de recolhimento -um quarto que diz ser de sua mãe-, escrevendo suas memórias, por encomenda, mas também por compulsão interior. Molloy é vítima de um incessante rumor fabulatório, uma voz que impede o seu descanso.
Mas o enigma proposto é uma armadilha, uma falsa abertura "in media via". O romance não vai preencher a expectativa inicial criada. Apesar de não sonegar as peripécias que a suscitaram, vai mostrar que a vida de Molloy nunca foi muito diversa do que atualmente é. O leitor redobra a atenção, acompanha todos os passos da reconstituição (estimulado pelo detalhismo e a precisão das descrições do narrador), mas, ao fim e ao cabo, está de volta ao começo, com as dúvidas intocadas, tendo apenas confirmado a autodescrição que Molloy faz de seu próprio talento narrativo: perdido entre os extremos do narrar demais ou de menos.
Se o mergulho interior e o auto-exame foram, nos primórdios do romance, faces da vontade de compreensão do lugar do sujeito no mundo, aqui temos a máquina pensante como um mecanismo autônomo e independente da vontade de seu possuidor. A incapacidade de relacionamento humano que perpassa Molloy demonstra este desgarramento perverso. Herdeiro dos escombros da civilização burguesa, o personagem não consegue fazer cumprir a finalidade maior de seu primeiro tesouro: a razão, consubstanciada na linguagem. As palavras falham, o diálogo não se cumpre, a luz do entendimento não alcança o outro, nem esclarece a própria identidade, em que uma curiosa combinação entre Schopenhauer e Descartes corrige a máxima: choro, logo existo.
Em torno do episódio central (a viagem até o quarto da mãe), o narrador elenca uma série de outros que se equivalem em importância, cuja única ordem é garantida pela sucessão temporal, denunciada como fajuta pelo narrador, que admite a precariedade da própria memória. Para Molloy, não vale a distinção entre as experiências e as vivências, as tarefas mecânicas e os projetos de vida, o trabalho e o labor. Este nivelamento dos fatos, equivalência forçada, impossibilita que o romance apresente um desenvolvimento, no sentido tradicional do termo, dramático do enredo (progressivo aumento de tensão) e psicológico da personagem (amadurecimento e incorporação das experiências à identidade individual). Molloy não aprende, nem se modifica, a não ser pelo processo de decadência física a que se encontra submetido (a decomposição como forma de vida).
Isto não significa que nada lhe aconteça. Molloy narra fatos, encontros e conflitos que convidam o leitor a aguardar desdobramentos, às vezes graves, que não vêm -como os percalços de sua existência lúmpen (interrogatórios na polícia, convivência com assistentes sociais e outras criaturas da rua), um interlúdio amoroso com a dona de um cachorro que, na travessia da cidade, atropela com a bicicleta e mata, ou o assassinato gratuito de um mendigo que atravessa seu caminho. Beckett frustra esta expectativa. O romance se desenrola sob o signo do "non sequitur", não como uma adesão ao absurdo de um surrealismo maneirista, em busca de efeitos, mas como a demonstração da inadequação de uma forma à necessidade narrativa de um personagem incapaz de encontrar sentido imanente no mundo ou de impregná-lo de um sentido subjetivo, faces do mesmo vazio que esta narrativa busca apreender e descrever.
No universo cinzento que Molloy habita, em que o mais alto poder de abstração (a razão) está reduzida a apêndice dos processos fisiológicos de um corpo que decai, o notável é o espaço que Beckett ainda encontra para o humor, a capacidade de rir de si próprio, autoconsciência irônica que é a essência de sua narrativa e da vida interior de seu personagem. Expondo as entranhas do romance, a natureza convencional que sustenta a impressão de verdade de que o realismo depende (a confusão entre causalidade e consecução, lógica e cronologia), no destino de Molloy, exemplar pela inocuidade, Beckett apanha pela raiz o sentimento claustrofóbico da existência moderna, em que a novidade parece excluída e somos protagonistas de um enredo clownesco, que gira em falso. Neste sentido, a odisséia de Molloy, começando com a lembrança de um arremedo atualizado do Quixote (o personagem coxo que parte em busca da mãe, memória pouco substancial, tentando equilibrar apetrechos aparentemente inconciliáveis, muletas e bicicleta) e terminando onde começou, solitária, no quarto, funciona como metáfora espacial do método da narrativa possível quando a tradição se esgota. Como seu autor, Molloy sabe que é preciso mover-se, tortuosamente, para seguir em frente: "Não sei, não o saberei nunca, no silêncio não se sabe, é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar" (2).

NOTAS 1. Beckett, S. "Three Dialogues". Em: "Disjecta. Miscellaneous Writings and a Dramatic Fragment" (London: John Calder, 1983).
2. Palavras finais d"'O Inominável" (trad. Waltensir Dutra/Nova Fronteira).

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