São Paulo, domingo, 8 de setembro de 1996
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O exemplar de uma raça em extinção

LUIZ TARLEI DE ARAGÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Paris, fim do século. Muitos dos grandes intelectuais que corporificaram a história das idéias na França no decorrer deste século desapareceram. Alguns sem comoção particular, a não ser aquela da perda, como foram os casos de Marcel Mauss, Georges Dumézil, Jean-Paul Sartre, Fernand Braudel e Jacques Lacan.
Em seguida houve uma série de mortes trágicas, ou pelo seu inesperado, ou, mais ainda, pelas circunstâncias anormais (condutas suicidárias, suicídios, estranhos acidentes) em que se deram. Estão neste caso os desaparecimentos de Louis Althusser, Nikos Poulantzas, Roland Barthes, Lucien Sebag, Pierre Clastres, Michel de Certeau (co-fundador, com Lacan, da École Freudienne) e, mais recentemente, Gilles Deleuze. Tudo se passa em Paris como se a intelectualidade francesa, em suas mais altas representações, sofresse de um mal generalizado -a morte prematura (1), trágica-, em meio a um relativo vazio das idéias.
Diante disso tudo, Claude Lévi-Strauss, aos 88 anos (ele é de 1908), em sua soberania, aparece como um condor solitário, de espécie manifestamente em extinção.
Fomos encontrá-lo em seu alto nicho, inexpugnável mezanino -espécie de "olho de boi", de onde se vislumbra toda a vasta sala de leitura da antiga biblioteca da Escola Politécnica-, no último andar do prédio onde funcionou até recentemente, e por um século e meio, essa instituição criada por Napoleão Bonaparte.
Sofrendo de uma longa enfermidade que lhe deixou as mãos trêmulas, Lévi-Strauss hoje caminha com alguma dificuldade e perde aos poucos o timbre de voz, espesso e seguro, o qual os ouvintes de seus seminários dos anos 60 e 70 estavam habituados a reconhecer.
Continua indo uma vez por semana à Academia Francesa (às quintas-feiras, dia de sessão), da qual é membro há mais de 20 anos. Passa semanalmente (em geral às sextas-feiras) no laboratório de antropologia social do Collège de France, que ele criou ao ser admitido e onde ocupa ainda o privilegiado bureau.
Apesar de ter feito uma sucessora, Françoise Heritier, e de ter passado a ela toda a parte logística e as responsabilidades institucionais do cargo de diretor do laboratório, Lévi-Strauss continua pontificando por onde transita, com seu perfil singular: mistura de grande rabino (como foi seu avô materno), de artista (como foi seu pai, pintor de reconhecido talento) e de pensador ensimesmado (o que ele é, em dominância). É preciso ver-se seus colaboradores de pesquisa e a maneira formal e recolhida com que se aproximam dele: apesar de passar o cetro, continua pontífice.
Na entrevista a seguir, Lévi-Strauss fala de sua identidade pessoal, de sua preocupação com o século, do Brasil. Fala também da natureza, de seus laços com os americanos e, naturalmente, de antropologia.
*
Folha - Como o sr. vê as ciências humanas neste fim de século e particularmente a filosofia e a antropologia?
Claude Lévi-Strauss - A filosofia não é meu departamento. No que concerne à antropologia, penso que ela irá se transformar de uma maneira muito profunda e que, em lugar de os ocidentais trabalharem sobre os povos exóticos, a antropologia será feita por esses povos. Eles mesmos trabalharão sobre suas culturas. Exatamente como nós trabalhamos sobre a Grécia, Roma e o Renascimento. Somos úteis a eles, pois eles não têm documentos escritos, e os únicos que terão são aqueles que os antropólogos produziram ao longo desses últimos, digamos, cem anos.
Folha - O sr. estaria dizendo que a antropologia vai se tornar de uma certa forma a história dos povos primitivos?
Lévi-Strauss - Ela será, para essas civilizações diferentes, a mesma coisa que a história das idéias e das mentalidades continua sendo para nossas próprias sociedades.
Folha - Como o sr. vê, na França atual, a herança específica de Marcel Mauss, de Durkheim e a sua própria?
Lévi-Strauss - Essa herança, no meu entender, está em mãos excelentes. Na nova geração (e eu falo da antropologia, mais uma vez), existem numerosos, extraordinários pesquisadores. De maneira que nós não temos do que nos queixar; e, bem ao contrário, na minha opinião, temos que nos dar por felizes que as coisas tenham tomado esse rumo. Nada estará perdido. Tudo continua.
Folha - Como o sr. vê hoje a antropologia americana e inglesa, os herdeiros de Malinowski, Firth, Evans-Pritcchard, Max Gluckman?
Lévi-Strauss - Não sigo mais essas coisas de tão perto para pronunciar julgamentos definitivos. No entanto, tenho a impressão que tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos o momento heróico passou e volta-se hoje para tarefas mais modestas.
Folha - E a antropologia de Chicago: Sahlins, Geertz...?
Lévi-Strauss - Bem, graças a Deus, Sahlins continua vivo, trabalhando, e ativo, muito ativo.
Folha - E Edmond Leach, que amava tanto a sua obra? Foi graças a ele que, no começo, seu trabalho foi bem compreendido e difundido na Inglaterra.
Lévi-Strauss - Sim, mas é aquilo que poderíamos chamar de uma relação de "love/hate" (em inglês, na entrevista), amor e ódio. Certos dias, ele me amava muito, outros, me detestava. A infelicidade é que ele me amava muito em palavras e me detestava por escrito. Eu preferiria o contrário (risos).
Folha - A sociedade está cada vez mais marcada pelo computador e a Internet. Em breve, entraremos no terceiro milênio, no seio de uma civilização que vai prescindindo cada vez mais das relações tal como as conhecemos. O que os cientistas sociais vão se tornar?
Lévi-Strauss - Ouça, serão outros seres humanos. Será uma outra "raça" de homens. É muito difícil para mim julgar como será. Eu não me aproximo de um computador e uso ainda uma máquina de escrever mecânica. Mas virão outros homens que saberão pensar com esses instrumentos, com um pensamento absolutamente distinto do nosso, atual. Seria talvez absurdo fazer-se uma previsão com uma certeza de cálculo, mas certamente isso tudo não apresentará nenhum relação com o que conhecemos no presente.
Folha - O sr. guarda alguma nostalgia em relação ao "homem" que nós conhecemos?
Lévi-Strauss - Evidentemente. Eu mesmo sou um homem de uma "raça" que está talvez desaparecendo.
Folha - Certa vez, perguntei ao sr. se a antropologia social na França havia nascido com sua obra. Tivemos Durkheim, Hertz, Mauss, mas as coisas estavam um pouco dispersas (a não ser por Hertz) no que concerne às grandes sínteses. Síntese que o sr., tão singularmente, fez...
Lévi-Strauss - Eu acrescentei talvez algumas coisas que faltavam à tradição francesa, ao "idealismo" próprio ao pensamento francês. Por exemplo, acrescentei o espírito da antropologia anglo-saxã, em particular o pensamento e as contribuições mais marcantes de gente como Boas, Lowie, Kroeber (ele mesmo um ex-aluno e seguidor de Boas). Eu tinha muita amizade por Margareth Mead, por exemplo, e creio que era recíproco. Ela já apresentava alguma coisa de diferente em relação àqueles que citei e a mim mesmo. Era a vontade de se servir da antropologia para outra coisa. Não se tratava, no caso dela, da antropologia por ela mesma.
Folha - Parece-me que não há no cenário atual da intelectualidade parisiense -e o sr., juntamente com Louis Dumont e pouquíssimos outros, são exceção- intelectuais de relevo como Sartre, Dumézil, Lacan, Foucault e Barthes.
Lévi-Strauss - Sou um mau juiz para essa questão. Mas diria que há sempre, na evolução intelectual, períodos de pesquisa e de coletas de dados, e depois de grandes sínteses, de trabalhos mais coletivos. O fato de que não haja no momento personalidades muito marcantes não quer dizer que amanhã não haverá.
Folha - O que realmente ficou do Brasil em sua memória?
Lévi-Strauss - As noites do sertão, a caminho dos bororos e dos nhambiquaras. Por coincidência, você me fez chegar às mãos, traduzida, uma obra, com o mesmo título -"Noites do Sertão"-, de Guimarães Rosa. Li esse livro com muito prazer.
Folha - O que, finalmente, o Brasil lhe deu?
Lévi-Strauss - O Brasil me deu tudo! Eu devo, em primeiro lugar, dizer que os brasileiros, todos eles, foram comigo de uma gentileza e de um devotamento muito amical e generoso. Eles me tornaram tudo sempre mais fácil. Mas, se eu devesse ser absolutamente franco e quase cínico, diria que aquilo que o Brasil essencialmente me deu não foi o que os paulistas, os cariocas, os bororos, os cadiueus e os nhambiquaras me deram, mas sim a natureza. A natureza virgem, uma coisa que na Europa não se pode conhecer.
Folha - O sr. gostaria de voltar ao Brasil?
Lévi-Strauss - Passei da época de ter desejo de ver Brasília ou São Paulo. Tenho vontade, sim, de ir a outras regiões no Brasil, para as quais estou agora muito velho.
Folha - O sr. tem recordações dos cadiueus, dos guaicurus?
Lévi-Strauss - Eu os acompanho sempre, e não somente eles, mas numerosos povos primitivos que ainda sobrevivem no planeta. Os cadiueus estão em péssimas condições. Por outro lado, acabo de receber um documento sobre um grupo indígena com uma língua muito especial, quase perdida, e que precisa urgentemente de ajuda...
Folha - O sr. fala há muito tempo de coisas que se perderam, de culturas que desapareceram, e esta é a sua preocupação. Certa vez, perguntei ao sr. sobre o pouco interesse que dedica às sociedades complexas, modernas.
Lévi-Strauss - E certamente naquela ocasião, eu me lembro, eu respondi que se tratava de evidente urgência: elas estavam e continuam desaparecendo, com sua língua, sua cultura material, seus mitos e sua maneira singular de ver o mundo.
Folha - Muitos dos traços fundamentais da civilização francesa estão se perdendo, diluindo-se numa publicidade maciça de "produtos" descaracterizados culturalmente...
Lévi-Strauss - É um problema do mundo inteiro. A cada vez que eu ia aos Estados Unidos, ficava assustado com o que estava acontecendo naquele país. Igualmente, fui muitas vezes ao Japão, e cada vez que voltava lá, diziam-me: olhe, da última vez o senhor pôde ver isso e aquilo, mas agora não é mais possível.
Folha - No Collège de France, o sr. falou por longos anos de "casa", "território" e "identidade". Qual é a sua identidade?
Lévi-Strauss - Digamos, eu sou judeu. Meu avô materno era rabino. Meu pai, pintor de quadros. Mas Israel é um conhecimento intelectual. Sei muito bem que venho de lá, mas não sinto, por exemplo, laços com a natureza de lá.
Folha - Um pouco como Durkheim...
Lévi-Strauss - Sim, exatamente. Minha família também é alsaciana, e eu percebo muito bem meus laços com o judaísmo alsaciano. Mas são apenas laços. E por outro lado, sinto-me também ligado à natureza da Alsácia...
Folha - Como o senhor se sente na Academia Francesa, um antropólogo imerso num meio de literatos, escritores e dicionaristas?
Lévi-Strauss - Olha, com toda a sinceridade: é divertido...

NOTA 1. Poderia tratar-se, e talvez mais propriamente, de uma "morte prematura das idéias dos intelectuais da atualidade francesa", como me fez observar a antropóloga Lia Zanotta Machado.

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