São Paulo, domingo, 8 de setembro de 1996
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Mao viveu enganado pelo otimismo

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Nove de setembro de 1976, 12h10. O médico Li Zhisui pegou na mão do presidente Mao e quase não sentiu seu pulso. Mao perguntou: "Há alguma coisa a fazer?" O médico respondeu: "Temos condições de ajudá-lo".
Os olhos de Mao cintilaram de alegria e, no mesmo instante, se fecharam. Ele morreu como sempre gostou de viver, enganado pelo otimismo dos assessores.
Cem flores, grande salto, revolução cultural -Mao era bom de imagens. A colheita foi de 215 milhões de toneladas. As estatísticas diziam 350 milhões. Quem se arriscava a divulgar os números exatos e ser chamado de derrotista?
A tênue fronteira entre a realidade e os sonhos dilui-se nas brumas dos anos 60. Mao virou moda no Ocidente. Andy Warhol pintou seu retrato, Jean-Luc Godard fez "A Chinesa", grandes líderes de maio de 1968 eram maoístas.
Mesmo Sartre, vendendo jornais na rua, se aproximou das teses do "Grande Timoneiro".
Certeza da morte Mao sabia esconder a realidade de si próprio. As estações de trem eram esvaziadas em sua passagem. Só ficavam seguranças, fingindo-se de vendedores. Massas de camponeses levavam a colheita de um lugar para outro, apenas para dar a impressão de fartura.
O médico Li Zhisui, que viveu 20 anos ao lado de Mao, descobriu que o "Grande Timoneiro" tinha uma certeza: a de que ia morrer.
E transava com todas as mulheres que podia, de preferência jovens bailarinas. Duas delas, integradas em seu corpo de oito enfermeiras, estavam de plantão no dia de sua morte.
Revolução Cultural Proletária. O que se soube dela? Milhares de mortos, desterrados, suicidas, intelectuais desfilando com grandes orelhas de burro e cartazes no peito, pessoas obrigadas a ficar de braços abertos, recurvadas, imitando aviões.
Jonathan Spence ("Em Busca da China Moderna") revela bem os sobressaltos que Mao impôs à China, para ser fiel a uma idéia de revolução permanente, que ele adaptou de Trótski, trocando o adjetivo: continuada.
Ídolo da década Mao tinha apoio dos jovens. Ele sempre soube jogar bem com seu ressentimento sexual, suas frustrações econômicas. Em vários momentos, ameaçou começar tudo de novo, embrenhar-se no interior, recriar um Exército popular e, naturalmente, tomar o governo.
Talvez tenha sido a energia de Mao o elo que o atou aos anos 60, tornando-se um dos ídolos da década. Palavras do médico Zhisui: "Na sua iconoclastia e recusa em aceitar a rotina, Mao se rebelava também contra o tempo. Dormir, tomar banho -tudo era perda de tempo. Seu corpo se recusava a se ajustar a um dia de 24 horas"(1).
No Brasil, vi muitas meninas maoístas de saia comprida e recatadas. Maoísmo e religião se entrelaçaram, enquanto o "Grande Timoneiro" amava livremente. Uma mulher declarou ao dr. Li que Mao era um gigante também na cama.
Vinte anos após sua morte, ainda se sabe pouco. Ao contrário de Stálin, Mao não assassinou adversários em grande escala; ao contrário de Hitler, não atacou outros países, apesar da invasão do Tibete.
Ninguém, no entanto, tem mudado tanto quanto Mao, depois de morto. Seu nome agora é Zedong (Tse-tung). Suas imagens foram associadas a grandes saltos para trás, e o livro sobre sua vida pessoal revela um homem embriagado pela própria vontade.
Nada isso impede que tenha sido um dos construtores da China moderna, que entra no século 21 mais cortejada que a Rússia.
Hoje, até os intelectuais do Ocidente concordam com a opinião desse lavrador chinês -a história de Lin Biao (o general que tentou golpear Mao e morreu voando para a então União Soviética) nos deu uma lição importante.
Acabamos vendo que os dirigentes, lá em cima, podiam dizer hoje que uma coisa é redonda e amanhã essa mesma coisa é chata.

NOTA: 1. Li Zhisui - "The Private Life of Chairman Mao", Random House.

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