São Paulo, domingo, 8 de setembro de 1996
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Baleias e coxas

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Ali mesmo, onde começa o Arpoador, havia um grupo que parecia, ao mesmo tempo, passeata imóvel e comício móvel. Umas 50 pessoas, tipo zona sul, sem muita bossa para a função. O grupo pecava pelo deslumbramento de si próprio ou de sua causa.
Causa por sinal meritória: as baleias. Havia duas ou três bandeiras com palavras de ordem no gênero: "Salvemos as baleias!". Uma guria boazuda, de amplas e confortáveis coxas, pelo megafone pedia ao pessoal da praia que respeitasse as baleias, não as sacrificando aos apetites mercantilistas dos inimigos da espécie.
Nunca vi baleia por ali, embora frequente o pedaço há anos. Aliás, nunca tive o prazer de ver uma baleia, a não ser em cinema (Moby Dick e a baleia de Pinóquio) ou aquela outra da Bíblia, que engoliu o profeta Jonas.
Gosto do romance de Melville, aquele monstro inexpugnável rolando seu imenso corpo leitoso nas águas, metáfora do absoluto. Sei que as baleias já não são disputadas pela fartura de seus óleos e carnes. Nem creio que haja uma cidade no mundo que seja iluminada com a luz de suas gorduras.
Daí o espanto: por que as moças de Ipanema, com suas coxas confortáveis, estão preocupadas com as baleias? Não faz muito, em Biafra, na Abissínia, a fome devastou tribos inteiras, Ipanema nem deu bola, nenhuma moça, com ou sem coxas suculentas, pegou o megafone e clamou contra a má distribuição de renda no mundo.
Deus é testemunha de que nutro pelas baleias um afeto proporcional ao tamanho delas: grande. Mas não me emocionei com o comício, embora prestasse abjeta atenção na moça coxuda. Peguei o carro, ao passar pelo local buzinei com estridência. Não fui entendido: recebi uma pequena vaia.
Eu queria chamar a atenção delas, afinal, estou em pior situação do que as baleias: em extinção. E sem ninguém -nem mesmo eu- defendendo minha sofrida e desesperada causa.

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