São Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 1996
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O gênio retorna em "Além das Nuvens"

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Após 13 anos de silêncio, esperava-se de Michelangelo Antonioni algo bombástico, como um "testamento" desse grande diretor, referência obrigatória do cinema moderno.
"Além das Nuvens" não é nada disso, o que talvez explique a frieza com que foi recebido. Ao contrário, Antonioni parece sentir a velhice como descompromisso e plenitude.
Com tudo isso, Antonioni se autoriza a filmar quatro contos de sua própria autoria (extraídos do livro "Quel Bowling sul Tevere"), unidos pela figura de um cineasta (John Malkovich) que viaja e fotografa, enquanto reflete sobre sua atividade.
É um filme íntimo. Existe ali o prazer de transitar entre paisagens que o inspiram (de Ferrara, na Itália, a Paris). Ou de criar imagens rigorosamente deslumbrantes. Ou ainda de trabalhar com esse som direto europeu, tão particular, em que o chão range gloriosamente, quando os personagens andam.
Ao mesmo tempo, tem um longínquo (e ocasional) parentesco com "Short Cuts" -o filme de Robert Altman-, já que o sentido se multiplica na medida em que os vários contos se cruzam na memória do espectador.
Temos, de início, a história de um rapaz (Kim Rossi Stuart) e uma moça (Ines Sastre) que se conhecem, se apaixonam e se desencontram. Só três anos depois, voltam a se cruzar.
Depois, o próprio cineasta segue uma outra garota (Sophie Marceau). Até que ela, incomodada, conta-lhe a surpreendente história que viveu.
No episódio seguinte, outra garota conta a um homem (Peter Weller) um caso lido num jornal. É o início de um romance que dura três anos, após os quais a mulher do homem (Fanny Ardant) decide abandoná-lo.
Por fim, um rapaz (Vincent Perez) paquera uma garota (Irène Jacob) que encontra na rua e descobre que ela é católica, católica até demais.
Esses resumos são protocolares e não são. Em cada episódio, Antonioni desenvolve velhos temas seus, sugere idéias como a dificuldade do amor, a intervenção do acaso, o mistério da realidade, o suspense ou o crime.
Cada episódio evolui numa direção diferente, compondo um painel de hipóteses sobre a vida amorosa (infeliz, tumultuada, não acontecida, fugazmente feliz).
Cada destino anula o precedente, impõe a sua presença. Mas a própria sucessão de histórias enuncia o problema: se cada destino é absoluto, o mistério que encerra também é.
"Além das Nuvens" é um reecontro com um Antonioni leve, sem nada a provar, mas com muito, ainda, a mostrar.
É verdade que as sequências filmadas por Wim Wenders (abertura, epílogo, ligação) sofrem com o espírito parasitário que de tempos para cá se apossou do cineasta alemão.
São uns poucos minutos e não anulam a grandeza do filme. Não será demais lembrar que este filme foi feito por um homem idoso (completa 84 anos no dia 29 de setembro), com dificuldades de locomoção e quase impossibilitado de falar, devido a um derrame cerebral.
É quase um milagre que, nessas circunstâncias, tenha conseguido criar um filme de atmosfera tão sólida, com atores tão bem dirigidos. E, sobretudo, que tenha usado tão bem a estrutura da filmagem em episódios (o que favorece, no mais, alguém com saúde delicada): graças a eles, esse escoamento dos destinos ganha consistência.
"Além das Nuvens" é essa coisa rara: um filme de gênio.

Filme: Além das Nuvens
Produção: França, Itália, Alemanha, 1995, 105 min.
Direção: Michelangelo Antonioni
Com: John Malkovich, Fanny Ardant, Peter Weller, Sophie Marceau
Quando: a partir de hoje nos cines Espaço Unibanco 3 e Lumière 2

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