São Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 1996
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O maestro e a harpa

OLIVIER TONI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Conheci o maestro Eleazar de Carvalho na década de 50, quando integrava a Orquestra Sinfônica da Fundação Casper Líbero. Como naquela ocasião a orquestra não contasse com um contrafagotista entre seus integrantes, prontifiquei-me a tocar a parte de contrafagote.
O longo convívio com o maestro deixou como lembrança alguns episódios marcantes. Em 1960, os organizadores dos festejos da inauguração de Brasília convidaram todas as orquestras sinfônicas do país, além de um grande número de corais, para executarem o Choro nº 10 de H. Villa-Lobos, sob a direção de Eleazar de Carvalho.
Fizemos um ensaio em que não havia a menor possibilidade de ouvirmos os corais e nem mesmo os maciços tutti, com o vento jogando as partituras no chão. Não é difícil imaginar o que saiu no início do final.
Terminado o ensaio, ficaram apenas três pessoas naquele deserto imenso: o maestro, eu e um conhecido "band leader" da época. Tudo, então, aconteceu muito rápido: Eleazar caminhou em direção a uma das harpas, levantando-a com os braços, para colocá-la numa posição mais adequada.
Recusou-se a aceitar minha ajuda, mas ao mesmo tempo que tudo ia ocorrendo, o meu colega interpelou o maestro sobre assunto irrelevante. Ele, segurando a harpa no ar, lhe respondeu que "ópera não pode prescindir de um regente seguro, ao passo que um arranjo de música popular, para se reger, basta bater o compasso..."
Dito isto, colocou a harpa no lugar adequado e, olhando em minha direção com o seu sorriso inconfundível, pondera: "Toni, lá vai a lição de regência número um: saber levantar uma harpa, sempre que for necessário; e lição de regência número dois: levantar a harpa sempre sozinho, porque nunca encontrará ninguém que se ofereça para ajudá-lo."
Eu levaria muito tempo para contar outras tantas histórias de meu convívio com o maestro e sua multifacetada personalidade, raramente dominada pela cólera. Inteligente e matreiro, sua aparência de ouriço ocultava uma extraordinária capacidade de persuasão, tantas vezes imitado (até em seu sotaque nordestino...), porém nunca igualado por ninguém.

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