São Paulo, sexta-feira, 20 de setembro de 1996
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Doce-de-leite é sobremesa nacional

ISIDORO BLAISTEN
DO "WORLD MEDIA"

O doce-de-leite é um sabor nacional argentino. Tem algo de patriótico, algo de festivo, algo de comemoração. Os argentinos o associam à escola, à infância, aos momentos felizes.
Quem não se lembra de passar horas inteiras sentado à mesa da sala de jantar, tentando resolver aquele complicado problema: "Se três operários enchem um tanque de 10 mil litros em cinco horas, quantos operários seriam necessários para encher um tanque de 34 mil litros no mesmo tempo?"
Naquela época, os operários passavam seu tempo enchendo tanques. E eu, angustiado, virava-me para olhar a chuva pela janela, procurando desesperado inspiração que me ajudasse a desvelar aquele enigma, enquanto o caderno esperava, aberto em cima da mesa.
Era nesses momentos que o doce-de-leite, tirado de colher, diretamente do pote, acompanhava os misteriosos desígnios daqueles incansáveis operários e seus insaciáveis tanques.
O doce-de-leite também é a imagem primária, o sabor primário, porque, quando nos comportávamos bem, nossas mães nos concediam o raro privilégio de raspar o tacho, a borda onda ficavam os restos de doce-de-leite depois de ele ter sido transferido para os imensos potes de vidro.
Era uma operação singular. O doce ia endurecendo, grudando nos lados e no fundo do tacho, e nós, armados de uma colher e muita paciência, íamos recuperando e comendo os restos. O doce-de-leite possui a perfeição conferida pela simplicidade. Existem várias receitas e uma quantidade enorme de variações, mas bastam alguns litros de leite, açúcar e um pouco de baunilha.
Também é preciso (mas ninguém sabe explicar o porquê) um pitada de bicarbonato.
O ingrediente mais fundamental, entretanto, é uma mãe. Uma mãe que, de pé, ao lado do fogão, dê voltas e mais voltas intermináveis com uma colher de pau nesse líquido que vai engrossando lentamente, sobre o fogo baixo.
Os puristas consideram qualquer outro acréscimo uma profanação, mas há quem inclua, para "dar sabor" ao doce, mel, canela em pau, raspas de limão, chocolate ralado ou nozes picadas. Assim como há também aqueles que, para engrossar o doce, acrescentam farinha, gemas de ovo ou fécula de milho.
Mas nada disso acrescenta algo à sobremesa argentina; a única maneira "natural" de fazer o doce-de-leite engrossar é cozinhá-lo.
Existem receitas que dão três quartos de hora, outras uma hora e meia, mas a melhor é a que leva dez litros de leite e entre cinco e seis horas de cozimento, porque, como diz o ditado, "quem sabe comer sabe esperar". O recipiente no qual se faz o doce-de-leite precisa ser de cobre. A leiteira, a panela, a caçarola ou o tacho têm de ser de cobre.
Não se sabe por que é assim, mas, se o metal for outro, o doce-de-leite gruda no fundo.
Essa coisa de "ver o ponto" é bastante importante para saber quando o doce-de-leite está pronto. Sabe-se porque se intui misteriosamente ou porque se comprova vertendo um pouco do doce num pires e deixando que esfrie.
Se, ao se inclinar o pires, o doce não escorrer pela superfície, é que está no ponto.
No século passado havia escravas negras e mulatas que reconheciam o ponto exato de cozimento do doce-de-leite apenas pelo cheiro. Como se vê, uma intuição que é uma forma de conhecimento.
Metade das sobremesas argentinas deixaria de existir sem o doce-de-leite. Ele participa de todos os sabores, não exclui nenhum e é a guloseima por antonomásia, paradigma por definição. É sabor de infância e sobremesa de bêbados, porque, dissolvido com vinho, adquire um sabor báquico, candidamente perverso.
A origem do doce-de-leite é desconhecida, não há mais do que lendas, relatos incertos que se baseiam em alguém que pôs leite com açúcar para ferver e então adormeceu ou esqueceu a panela no fogo.
Ao despertar, ou ao lembrar-se da panela, descobriu, por acaso, o doce-de-leite. Seja como for, dizem que o doce-de-leite é oriundo da Província de Buenos Aires e que o leite só pode ser de vaca.
O doce-de-leite é democrático e pluralista. Não reconhece classes sociais, está além de toda ideologia e, como o tango, agrada a todos e cria hábito em todos por igual.
Por isso, quando um argentino é separado do doce-de-leite, sofre a síndrome do sabor negado e, quando precisa enfrentar uma longa estada num país estrangeiro, começa a sentir sua ausência. Basta evocá-lo para a saudade se fazer sentir, até a síndrome de abstinência se instalar em seu ser.
Então, como um remédio para melancólicos, o argentino no exterior recorre ao leite condensado. Outro recurso consiste em mandar cartas desesperadas a qualquer parente ou amigo que possa estar transitando pelas rotas aéreas do mundo próximas do lugar onde o "doente" estiver morando.
É por isso que os viajantes carregam a quantidade de doce-de-leite liberada pelas companhias aéreas.
Todo argentino em contato com estrangeiros se torna seu exegeta, seu prosélito, embora alguns estrangeiros o achem doce demais. Não faz mal -com o tempo, acabam aprendendo.

Tradução de Clara Allain

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