São Paulo, sexta-feira, 20 de setembro de 1996
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Dieta feita com guerra e arroz

HAMZA BAKSIC
DO "WORLD MEDIA"

A paz acabou com três ataques a Sarajevo. Um usava artilharia, outro morte pela fome e o terceiro, morte pela sede.
Quando, em dezembro de 1995, as donas de casa da capital bósnia finalmente tiraram dos armários seus livros de receitas, tiveram de reaprender a cozinhar. A guerra as havia obrigado a cozinhar com nada.
Vou iniciar minha história da cozinha de guerra em Sarajevo no Natal de 1991. Nesse dia visitei meus amigos Zeljko e Behija. Ele é croata, que neste país significa católico. Ela é bósnia, que quer dizer muçulmana.
Antes da guerra, famílias como a deles comemoravam tanto os feriados cristãos quanto os islâmicos, e entre aquele Natal e a Páscoa do ano seguinte Behija demonstrou todos os pontos fortes de nossa cozinha regional, caracterizada -como a de todas as cidades bósnias- pelo multiculturalismo.
Lado a lado na mesa costumava haver presunto defumado da Dalmácia e "sudzuka" bósnia (uma espécie de salsicha feita de carne de vaca e carneiro); "sogan-dolma" bósnio (cebolas recheadas de carne moída e arroz) e "sote stroganoff" (estrogonofe de carne).
Então veio a guerra. Tudo que era belo foi relegado à memória. Durante mais de 40 anos de paz, a guerra se tornara uma espécie de ameaça mítica na cabeça das pessoas, algo que só acontecia aos outros.
Na Bósnia, as guerras eram lembradas e associadas à fome e ao frio; uma época em que era quase impossível encontrar sal, em que não se encontrava alimentos contendo gordura.
A guerra que se abateu sobre o país quase no final do século 20 parecia, por alguma razão, pior do que qualquer outra.
Logo de início desapareceu a coisa mais importante: o valor da vida humana. Depois a guerra começou a separar e destruir as famílias. Instalou-se o pesadelo cotidiano.
Geladeiras, fornos de microondas, fogões e lavadoras deixaram de funcionar. Não havia televisão e os rádios eram postos para funcionar com as baterias dos carros.
As casas eram iluminadas com velas, e quando estas também acabaram as pessoas começaram a usar lamparinas abastecidas com óleo diesel.
Foi nesse momento que a comida começou a escassear. As últimas refeições foram dadas às crianças. Pouco depois começou a chegar a ajuda humanitária; o suficiente apenas para garantir a sobrevivência.
No início da guerra, os moradores de Sarajevo perderam em média um quilo de peso por mês, durante quase um ano. O alimento fornecido pelas organizações humanitárias era o arroz. Só o cascalho tem menos componentes nutritivos.
Durante um ano o "prato do dia" em Sarajevo era arroz e nada mais. Em uma ocasião foi encontrada uma preciosidade -uma lata de molho de tomate-, que acabou sendo dividida entre 15 famílias.
Durante o verão de 1992, os moradores de Sarajevo caminhavam pelos campos, sob fogo de morteiros e franco-atiradores, carregando livros sobre plantas comestíveis.
Algumas delas eram conhecidas por todos -urtiga, "plantain" (planta comestível semelhante à bananeira) e dente-de-leão-, mas em pouco tempo os estoques dessas três plantas comumente encontradas já eram insuficientes.
Com a ajuda dos livros, esses botânicos amadores saíam em busca de sorveira, malva e alcachofra-dos-telhados; começaram a distinguir os diferentes tipos de trevo, a reconhecer o sabor da pulmonária, da labaça obtusa e da samambaia fêmea.
Naquele primeiro verão, os moradores já começaram a secar plantas comestíveis para consumo no inverno.
Sem poder inventar comida que não existia, as donas de casa tentavam criar uma ilusão de variedade. Qualquer coisa verde era usada para substituir, pelo menos visualmente, as verduras.
Um prato típico da época era uma espécie de gelatina composta por uma colher de óleo (por pessoa) misturada a dentes de alho fatiados, na qual se mergulhava o pão, à luz de uma lamparina cheirando a diesel.
Na primavera de 1993, começaram a surgir as hortas caseiras em Sarajevo. Primeiro em vasos e quintais, depois nos parques públicos cujas árvores e arbustos tinham sido derrubados no inverno anterior.
Uma lata de arenque ainda tinha de ser dividida entre duas pessoas. Nessa época circulava uma piada sobre o morador de Sarajevo a quem perguntaram o que pediria para comer: "Eu pediria uma lata inteira de arenque só para mim."
Havia comida no território controlado pelo governo, do outro lado da cidade sitiada de Sarajevo. A única maneira de chegar lá era atravessando a pista do aeroporto da cidade, controlada pela Força de Proteção da ONU e alvo dos franco-atiradores sérvios.
Outra piada que se contava era sobre o morador de Sarajevo detido por soldados da Força de Proteção quando tentava atravessar o aeroporto, ostentando ao pescoço uma corrente da qual pendia uma dentadura.
"O que é isso?", indaga o tenente francês. "A dentadura da minha mulher -para que ela não acabe com minha ração humanitária enquanto estou fora", responde o homem.
O humor negro fornecia a pitada necessária de sabor à dieta: era preciso ser mais forte do que o infortúnio, e mesmo pão seco descia mais facilmente quando mergulhado em um pouco de bom humor.

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