São Paulo, sexta-feira, 20 de setembro de 1996
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Cozinha francesa tem primazia

PHILIP; MARY HYMAN

PHILIP e MARY HYMAN
"De todos os cozinheiros do mundo, os franceses são considerados os melhores." Assim começava a tradução inglesa de "Le Cuisinier François" (ou seja, "Français"), de La Varenne, em 1653. De lá para cá, praticamente nenhum escritor culinário no mundo ousou questionar a primazia da cozinha francesa. Como se pode explicar três séculos de domínio na cozinha? Quais os elementos que se combinaram para fazer da cozinha francesa sinônimo de excelência e marca registrada da civilização ocidental?
Em primeiro lugar, a França, diferentemente de muitos outros países europeus, possui uma capital gastronômica histórica: Paris. Recursos culinários de toda espécie se concentraram na cidade durante séculos: os melhores cozinheiros, os melhores ingredientes e os paladares mais sensíveis eram todos encontrados em um único lugar. Os observadores se espantavam com a diversidade e abundância dos alimentos que os parisienses tinham à sua disposição, e as Províncias pagavam um tributo gastronômico à capital, sob a forma de presuntos, salsichas, queijos, peixes e até mesmo tortas.
Foi também em Paris, no final do século 18, que surgiu uma inovação importante no campo da alimentação. Até então, comer fora significava comer em tavernas, que ofereciam opções muito limitadas. Mas nos anos que antecederam a Revolução Francesa surgiu uma nova instituição, com pretensões gastronômicas bem maiores. Para se diferenciar da concorrência mais antiga, esses novos estabelecimentos adotaram o nome do caldo nutritivo que começaram por servir e que, supostamente, "restaurava" as forças. Assim, passaram a se intitular "restaurantes".
Antes dessa época a melhor cozinha era encontrada nas residências dos nobres. Os "chefs" migravam de uma casa a outra, e, embora o público pudesse ter ouvido boatos sobre suas habilidades, não podia sonhar em experimentar os pratos produzidos pelos grandes mestres. Tudo isso mudou com os restaurantes. No início do século 19, a cozinha se democratizou, e o público passou a ser convidado a saborear as criações dos melhores "chefs" -desde que pudesse pagar.
Toda uma cultura culinária começou a florescer, e em 1801 foi criado um novo termo para designar o que Montaigne chamava de "ciência da gula": a gastronomia. Criou-se uma verdadeira "ciência da mesa", com seus grandes mestres, heróis e até mártires, todos servindo à causa da gastronomia francesa.
A concentração de recursos, o ambiente receptivo, a audiência educada para apreciar a gastronomia e a proliferação de estabelecimentos prestigiosos, tudo isso não basta para explicar o surgimento e desenvolvimento de uma cozinha: é preciso contar, também, com grandes "chefs".
Na França os cozinheiros são respeitados, os "chefs" são admirados e os "grandes chefs" são honrados tanto quanto os chefes militares ou estadistas.
Assim como os artistas mudam nosso modo de enxergar o mundo, os grandes "chefs" mudam nossa percepção do sabor. Sua cozinha reflete não apenas suas personalidades fortes -caso de Auguste Escoffier e de Paul Bocuse-, mas as preocupações da sociedade em que vivem. Eles sentem que é seu dever produzir uma culinária melhor do que a do passado, promover o avanço da arte da culinária, renovando atitudes e explorando novos sabores.
Na realidade, é a disposição dos "chefs" franceses em questionar o passado, inovar, rever e criar que garante a reputação da culinária francesa.
De fato, a periódica formação de uma "nouvelle cuisine" é característica da culinária francesa e um dos seus pontos fortes. Já no século 17 os "chefs" franceses começavam a clamar por reformas. Os "chefs" atualizavam as receitas herdadas do passado e proclamavam que sua cozinha era melhor do que a das gerações anteriores.
Em 1651, La Varenne prometeu a quem comprasse seu livro que suas receitas eram "as que são servidas às melhores mesas da atualidade". Seu livro virou best seller. Um século mais tarde, Vincent La Chapelle adotou uma abordagem semelhante.
Em 1735, escreveu: "Se a mesa de um grande senhor fosse servida hoje como era 20 anos atrás, não satisfaria seus convidados". Seu livro "Le Cuisinier Moderne" anunciou o surgimento de uma "nouvelle cuisine", uma nova maneira de cozinhar que seria adotada por várias gerações de "chefs" franceses até ser contestada pelo renomado "chef" Carême, no início do século 19.
Em nossos dias, os "chefs" franceses voltaram a se rebelar contra a tradição e a "nouvelle cuisine" que revolucionou a culinária francesa na década de 70 suscitou um novo respeito pelas verduras e pelos molhos mais leves e a "descoberta" de especialidades regionais.
Não apenas a culinária francesa tem seus heróis, seus grandes homens -ela também tem seus mártires. O mais conhecido é Vatel, que em 1671 preferiu a morte à vergonha de servir um jantar imperfeito (cometeu suicídio ao saber que o peixe que encomendara para um banquete não havia chegado).
O gesto de Vatel é sintomático das tensões físicas e mentais às quais os "chefs" eram e ainda são submetidos. Hoje em dia as pressões são provocadas por sua reavaliação anual pelos autores de uma fonte de autoridade supostamente neutra e anônima: o guia "Michelin".
Para manter determinado nível de excelência e preservar suas tão cobiçadas estrelas atribuídas pelo Michelin, há casos de "chefs" que trabalham duro por muitas e muitas horas, chegando ata assumir dívidas.
Hoje em dia, a cozinha francesa está mudando. Paris perdeu sua posição preeminente. Os maiores "chefs" preferem trabalhar em povoados montanheses ou cidades do interior onde se sentem mais próximos da natureza (e onde podem individualizar suas criações, empregando ervas silvestres, molhadas de orvalho, colhidas em paisagens semivulcânicas).
Muitos dos grandes "chefs" publicam livros de receitas que defendem não apenas um estilo de culinária, mas todo um modo de vida. O vínculo entre saúde e culinária foi reforçado (muitas vezes em detrimento dos "princípios do prazer" expostos por gerações anteriores de gastrônomos).
Hoje, assim como em épocas anteriores, os elementos que contribuíram para enaltecer a cozinha francesa continuam presentes. Na França, a culinária ainda tem status de arte, com "grandes mestres" e regras próprias. Os "chefs" se agrupam em "escolas" e debates são travados entre os partidários de uma e os defensores de outra. A culinária francesa é vista como um monumento erguido por gerações de "chefs", todos trabalhando para melhorar o que herdaram. É uma arte em constante processo de aperfeiçoamento. Um público bem informado ouve os pronunciamentos de autoridades autoproclamadas, e a gastronomia é homenageada como parte da herança cultural nacional.
A arte dos grandes "chefs" continua a ser perpetuada -e exportada- por meio dos que aprenderam ao lado dos mestres. E assim, de geração em geração, novos estilos continuam a surgir e a cozinha francesa continua dinâmica.

Philip e Mary Hyman são historiadores norte-americanos que vivem na França há 25 anos. Ajudaram a promover o renascimento dos estudos de alimentação e culinária. Atualmente, trabalham numa pesquisa de especialidades regionais, encomendada pelo Conselho Nacional de Artes Culinárias, em Paris.

Tradução de Clara Allain

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