São Paulo, sexta-feira, 20 de setembro de 1996
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Quando a insipidez é fundamental

MICHEL TOURNIER

Qualquer pessoa que já tenha alimentado crianças sabe como é difícil convencê-las a superar certa insipidez que lhes parece ser fundamental. Quando se trata de criancinhas, a chave da alimentação é o leite. O leite puro, sem qualquer acréscimo. Passar do leite ao iogurte e, depois, à variedade infinita de queijos, não é tarefa fácil. É melhor começar pelo purê de batatas e peito de frango.
Qualquer alimento de sabor um pouco mais pronunciado é recusado enfaticamente pelas crianças. Será que existe alguém menos curioso do que uma criança, no campo da culinária? Para ela, qualquer novidade é a priori mal-vinda.
Ela não se sente tentada a fazer nenhuma experiência. E, quanto mais modesta é a origem social da criança, mais difícil se torna ampliar seus horizontes alimentares. Esse fato também pode ser interpretado pela maior importância atribuída à alimentação entre as pessoas para quem a pobreza ainda é uma ameaça.
O ato de comer só é divertido para a criança rica. Para a pobre, é uma coisa séria demais para brincadeiras. O alimento é sagrado (como, aliás, o pão era considerado sagrado também até pouco tempo atrás).
No início era a insipidez. Um livrinho sábio intitulado "L'Éloge de la Fadeur" (Elogio à Insipidez), de François Jullien, mostra a importância da noção de insipidez na pintura, na poesia e no pensamento chinês.
Mas essa importância é universal. Cada civilização se define por um alimento básico substancial e insípido. São eles: o trigo, no Ocidente, o painço, na África, e o arroz, no Oriente.
Há menos de cem anos cada francês consumia em média um quilo de pão por dia. Todo o resto funcionava apenas como condimento para esse alimento-base: cebolas, queijo, gordura, salsichas, chocolate.
A sopa tomada no jantar também era feita com pão, fervido com alguns legumes. A refeição básica do camponês indiano contemporâneo é composta por um grande prato de arroz, cozido sem qualquer acréscimo. Cada um enche seu prato de arroz. Depois, tempera o arroz com o conteúdo de vários diferentes potinhos, escolhidos segundo seu gosto pessoal.
Assim, as quatro substâncias culinárias básicas são o leite, o trigo, o arroz e o painço. O uso que é feito de cada uma delas define a civilização específica em que cada pessoa vive. Seu caráter fundamental facilmente lhes confere um valor sagrado.
Elas merecem respeito. Maltratá-las ou desprezá-las constitui sacrilégio. Ensina-se às crianças que o pão não deve ser jogado fora. Peço licença para evocar uma recordação pessoal. Por que se deve respeitar o pão? Quando fui transferido de uma escola religiosa a uma escola municipal, tive a surpresa de ouvir explicações diferentes.
"Porque o pão foi santificado por Jesus na eucaristia", disse o padre que nos dava aulas de religião na primeira escola. "Porque o pão simboliza o trabalho do homem", respondeu o professor da escola municipal.
Sobre essa base fundamental, a cozinha cria variações infinitas. Sobre a insipidez do alimento de base vêm colocar-se os sabores instigantes dos condimentos, como cores vivas sobre uma página branca. Sobre esse fundo branco o anis, o bétele, a canela, o curry, a noz-moscada, o cravo, a páprica, a pimenta, o açafrão, a salva e a baunilha estendem seu arco-íris multicolorido.
Será que se deve somar a esse contingente a dupla formada pelo sal e o açúcar? Não, pois o sal e o açúcar são alimentos, e não condimentos. Os condimentos não têm utilidade nenhuma. Servem apenas para nos dar prazer. Mas o açúcar e o sal contribuem em muito para a alimentação e o equilíbrio do organismo. Em termos espinozistas, o açúcar e o sal são atributos da substância insípida.
Os condimentos não passam de acidentes de percurso. Mas toda cultura é feita de acidentes, de riquezas inúteis, embora raras e caras. A civilização é necessidade, e a cultura é um luxo.
A cultura culinária constitui característica fundamental de um país, de uma região, de cada indivíduo. Essa cultura se faz acompanhar da rejeição enfática das outras culturas.
Repreendemos o estrangeiro mais agressivamente por ser alguém que "come mal" do que por se vestir de forma extravagante ou falar uma língua que nos é incompreensível. Aqui a intolerância deixa entrever o fundo religioso.
Ela manifesta o horror a um prato repugnante e sacrílego. No "Salammbô", de Flaubert, fala-se em "comedores de coisas imundas". O estrangeiro é sempre um pouco assim.
Como francês que sou, será que tenho condições de indicar as características principais da cultura culinária francesa?
À insipidez fundamental do trigo e da farinha, a culinária francesa acrescenta sobretudo não o açafrão, nem a canela, nem o curry. Como em todos os outros domínios da cozinha, quis obedecer, antes de mais nada, a um ideal de frescor.
É preciso denunciar uma ilusão profundamente arraigada no espírito francês. Temos a tendência a sobrestimar o papel do Mediterrâneo em nossa cultura. É sem dúvida um reflexo antigo de gaulês, para quem o saber e o refinamento vinham do Império Romano. Mas na verdade, se olharmos a situação da França na Europa, ela está situada bem mais a oeste do que ao sul. Sua costa mediterrânea é irrisória quando comparada a sua fachada atlântica.
É o oceano Atlântico que exerce influência maior sobre o clima francês, com o predomínio dos ventos de oeste. Somos oceânicos, e esse fato, naturalmente, exerce forte influência sobre nossa cozinha. Um dos traços mais originais do espírito francês é o grande valor atribuído à noção do frescor. Essa idéia é cercada de uma conotação infinitamente sedutora que engloba a juventude, a pureza, a candura, o vigor, etc.
A expressão culinária dessa estética do frescor se traduz no gosto pelas saladas de legumes e verduras cruas e pelas frutas frescas. O francês, quando vai a restaurantes ingleses ou alemães, fica chocado ao constatar que não pode pedir um prato de frutas frescas como sobremesa.
Outro fato digno de nota é que certas populações aparentemente mais oceânicas do que a francesa não compartilham esse culto ao frescor. Os irlandeses abominam os crustáceos, e os ingleses cozinham suas ostras. Que selvagens! E nos criticam por nossos "escargots" e nossas coxas de rã, que são o que se pode comer de mais estreitamente próximo da natureza e da vida!
A França não é apenas o país mais oceânico da Europa, é também o mais montanhoso. Ali a estética e a moral do frescor brilham e se expandem, mas em outro sentido, que pode ser descrito como vertical.
A água não é mais o oceano imenso, lançado pela tempestade ao assalto dos penhascos -é a cascata límpida que cai dos picos gelados e rochosos. Líquidos fundamentais, de frescor absoluto, nos são enviados pela montanha. São, em primeiro lugar, as águas minerais, remédios supremos porque puras e naturais, límpidas e, entretanto, carregadas de minerais e de virtudes.
Observe-se o fato estranho de que a sílaba "vi" se encontra no nome de várias fontes de água mineral -Vichy, Vittel, Evian, Volvic. No entanto, há mais: as cachoeiras e os lagos com seu peixe arquetípico, a truta, que sozinha simboliza todo o frescor irrequieto do mundo.

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