São Paulo, sexta-feira, 20 de setembro de 1996
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Os sapatos do dr. Kandir

LAURO CAMPOS

Keynes foi ridicularizado quando sugeriu ao governo inglês a realização de investimentos públicos financiados por recursos fiscais que, ao aumentar a renda, os volumes de emprego e da produção -ampliando a base tributária-, permitiriam que o governo recuperasse os investimentos públicos iniciais.
Diziam seus críticos que a receita de Keynes para redinamizar a economia britânica, assombrada com a presença de 1,2 milhão de desempregados em 1928, era o mesmo que alguém pretender se elevar puxando para cima seus próprios sapatos.
Kandir, que não é nenhum Keynes, promete um acréscimo de 1,5% do PIB brasileiro, decorrente de sua medida de desoneração tributária.
O ministro Kandir, que já nos passou tantos sustos, promete uma nova surpresa à população. Afirma que, se o governo desonerar os produtores de matérias-primas e de produtos semi-elaborados do pagamento do ICMS, ou seja, de parte do que os neonadas chamam de "custo Brasil", uma nova era de euforia, de desenvolvimento, se abrirá diante da tristeza e das penas até agora resultantes do enxugamento real.
Vejamos o roteiro das consequências da "mais importante medida" editada após o Real.
Estados e municípios experimentarão uma perda decorrente da redução da arrecadação do ICMS. A lei dinamizadora reconhece aquele prejuízo e, por isso, procura compensá-lo, pelo menos até o ano 2002, mediante a transferência de títulos do Tesouro. Logo, a União também perde.
Os Estados e municípios só poderão usar os papéis do Tesouro na transferência à União de parcelas de impostos a ela devidas. Logo, os sapatos que deveriam puxar o Brasil para cima, beneficiando todos os brasileiros, por enquanto se afundam no terreno movediço em que se funda o prometido e festejado milagre fiscal.
Se os produtores de matérias-primas e semifaturados destinados à exportação reduzirem seu custo fiscal e se apropriarem da importância antes destinada ao pagamento do ICMS, deles para a frente nada mudará. Eles venderão seus produtos pelos preços antigos, morrendo na praia a dinamização kandiriana.
Para que os exportadores ganhem, é necessário que as mercadorias por eles compradas baixem seus preços. Nessa hipótese, nem produtores, nem transportadores, nem intermediários, nem banqueiros poderão se apropriar da desoneração do ICMS.
Ou seja, supõe-se que todos os agentes sejam capitalistas idiotas que, diante da redução do custo correspondente à desoneração tributária, não elevarão seus lucros.
Além disso, para que os exportadores ganhem mais, conservando-se a intocável taxa cambial, o preço das exportações não poderá baixar. Caso os preços se reduzam, aliviados do "custo Brasil", o favor fiscal concedido por Estados, municípios e União se transferirá para os compradores externos, importadores das matérias-primas, dos produtos primários e semi-elaborados brasileiros.
Para que a desoneração tributária funcione como um substituto da desvalorização cambial, elevando as receitas dos exportadores, é necessário que o preço das exportações não se contraia, ou seja, que o chamado "custo Brasil" continue a limitar as exportações.
Para que o Brasil não perca com o assustador sistema Kandir, na hipótese de concretizar-se uma redução dos preços de exportação, faz-se necessário que esta induza um aumento da quantidade comprada pelos importadores externos, capaz de compensar a queda das receitas dos exportadores decorrente da redução dos preços das mercadorias exportadas. Dependerá, portanto, daquilo que em economês se denomina elasticidade -preço da demanda das mercadorias exportadas.
Puxando para cima os próprios sapatos, o criativo Keynes tucano conseguirá, no máximo, criar o mais complicado e incontrolável subsídio às exportações, que não se sabe se beneficiará alguém e a quem beneficiará.
A lei determina que máquinas e materiais de uso das empresas brasileiras possam ser importados com isenção de Imposto de Importação. Em nome da modernização das indústrias beneficiadas com mais esse favor fiscal, sucateiam-se definitivamente os setores nacionais que produzem máquinas e materiais concorrentes com os estrangeiros que a lei Kandir desonera.
Se no Brasil triste de hoje fosse permitido o humor britânico de 1928, alguém diria que Kandir conseguiu criar relações semelhantes àquelas que o casamento gera, por ser uma sociedade na qual a mulher tudo perde e o marido nada ganha...

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