São Paulo, quarta-feira, 25 de setembro de 1996
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Divergências indicam os rumos das artes contemporâneas

STELLA TEIXEIRA DE BARROS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os critérios de escolha dos artistas da exposição "Antarctica Artes com a Folha", norteando-se por uma investigação qualitativa em vez de optar por uma composição geopolítica, contribuem para que ela não se constitua com aspecto de mosaico, mas como espectro de diferenças que, apesar das dissemelhanças, dialogam entre si, criando pólos de discussão e avaliação de alguns rumos das artes visuais no Brasil contemporâneo.
A seleção dos artistas mostrou que algumas linhas mestras, alguns temas e alguns procedimentos são mais recorrentes, mas mostrou também que a criatividade destes artistas, formalizando-se como buscas individuais de identidade, é ampla e rica em suas disparidades, negando-se a ser configurada apenas por alguns poucos direcionamentos.
A apreensão do que seria uma arte brasileira emergente é pouco perceptível nas marcas ou nos ideários regionais que possam vir a assinalar de modo mais ou menos abrangente uma visualidade.
Além da problemática resultante da tentativa de delinear o que seriam essas marcas e esses ideários, o próprio desgaste em traduzí-los de modo decodificável já bloqueia a concentração nas questões mais intrínsecas à arte, porque a obriga a centrar-se em tarefas vistas como primordiais de seu engajamento, em detrimento daquilo que a obra de arte requer como atenção primeira, que são suas balizas estéticas.
A complexa diversidade que hoje a cena brasileira apresenta talvez possa ser explicada em parte pela trama artística e cultural, onde a produção já não se impõe mais a obrigatoriedade quer de justificar sua existência subsidiada por uma questão que está fora de seus próprios parâmetros para estabelecer uma identidade, quer de esconder sua origem enquanto espelho de grandes centros emissores de cultura.
As peculiaridades históricas e sociais deste país, extremamente complexas e aceleradamente cambiantes, dificultam a adoção de critérios superficiais de abordagem.
As questões relativas e delineamentos precisos dos padrões estéticos contemporâneos por si já são erráticos e sofrem consequência de filtragens de várias ordens, tanto nas regiões periféricas como nos próprios centros emissores desses padrões.
Mas se por um lado as imagens e informações circulam com velocidade irremissível nos grandes centros, por outro, a defasagem entre as diversas regiões brasileiras são de difícil explicação.
Seria preciso inventar e analisar um emaranhado de fenômenos na tentativa de identificar as diferenças culturais e por certo um resumo aqui seria irrelevante e inadequado pela complexidade que apresenta.
A cada instante novas formas de articulação e relacionamentos culturais criam o estabelecimento de outras instâncias de reflexão e outros desdobramentos da produção artística, acarretando uma nova compreensão de nossas singularidades, ou mesmo insinuando a autonomia dessas singularidades.
É um diálogo efervescente e conflituoso -interior-exterior e exterior-interior- que gera condições gerais de ganho, dubiedade e instabilidade de significados.
As andanças através do Brasil, tentativa de "turista aprendiz" em buscar de uma nova produção artística vigorosa, levaram à descoberta e à identificação de sintomas e marcas da sensibilidade contemporânea que brotam em repertórios de imagens provenientes das mais variadas fontes, com propostas que se querem inovadoras e inseridas em pressupostos de linguagens artísticas hodiernas.
O panorama que se descortinou é múltiplo, assim como são múltiplas, as relações possíveis dentro de uma proposta da visualidade brasileira.
Consequentemente, o número de artistas que compõem esta exposição, apesar de extenso, está longe de dar conta desta visualidade como um todo. Mas não deixa de apontar, com peso considerável, para algumas das particularidades mais incisivas desta geração que se inicia agora em suas abordagens artísticas.
Nosso olhar desliza errático na tentativa de identificar através das matérias e das técnicas quais as propostas que se encerram no âmago das obras.
Por vezes, o esforço exigido é mínimo, se desfaz naquilo que a obra demonstra com clareza, expondo-se a descoberto. Mas não há regras e cada obra se constitui num universo particular, com entonações próprias que nem sempre deixam transparecer com facilidade suas entranhas.
É impossível, de qualquer modo, uma avaliação crítica dessa contemporaneidade emergente sem se considerar questões sócio-culturais em maior profundidade que dêem conta do papel dos centros emissores de cultura e das coordenadas comportamentais e culturais dos receptores, e como estes decifram, recodificam e recriam, por vezes com extremada independência, a matéria informativa recebida.
É uma produção que nos convida também a refletir sobre sua própria gênese e como se constitui a trama de suas relações, criada pela dinâmica paradoxal de seu imaginário.
É uma geração que se recusa a operar fora de si própria, mas que assimila seu papel e age tentando revelar o que melhor tem a oferecer. Mas seus próprios limites ela ainda não nos disse quais são.
Estão esses artistas sintonizados numa espreita do futuro, à busca de uma saída para uma instabilidade do presente ou calçados no presente? Perscrutam algo fixado num possível ou mistificado futuro ou tentam expandir com agudeza pacienciosa suas possibilidades?
"A coerência -nos lembra Antonio Candido- é em parte descoberta pelos processos analíticos, mas em parte inventada pelo crítico, ao lograr, com base na intuição e na investigação, um traçado explicativo. Um, não o traçado, pois pode haver vários, se a obra é rica". Sabemos que as interpretações têm sempre uma dose de arbitrariedade, e que, sob esse aspecto, um período "inventa e descobre" os artistas de sua geração, nas marcas de sua sensibilidade.

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