São Paulo, sábado, 28 de setembro de 1996
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Justiça supranacional no Mercosul

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

É muito provável que a maior parte dos brasileiros não tenha notado que a vocação latino-americana do Brasil, prevista no artigo 4º da Constituição, está passando por substancial transformação, que interferirá em suas vidas, se os efeitos de recentes reuniões no Guarujá (SP) e em Ouro Preto (MG) forem o que parecem destinados a ser.
No Guarujá cumpriu-se a Semana Jurídica do Mercosul. Em Ouro Preto se realizou o 1º Congresso Internacional de Direito Comunitário, em que também dominaram questões relacionadas com a integração regional do Cone Sul. Nos dois certames foi grande a preocupação com as soluções jurídicas e judiciárias para enfrentamento dos problemas ultranacionais que surgem no relacionamento comunitário.
Está, pois, na hora de o cidadão brasileiro saber que as normas constitucionais dos Estados Membros do Mercosul (o Brasil é um deles) deverão ser adaptadas, no futuro, para se ajustarem ao direito comunitário. Isso quer dizer que nesses países o direito comunitário terminará aplicável em cada uma das nações participantes, ainda que desajustado do direito local. A aplicação não se referirá apenas às relações econômicas ou políticas, mas valerá também para os órgãos jurisdicionais e administrativos.
O conjunto dessa informação resumida significa que se estará caminhando para a criação de uma corte de Justiça supranacional, decidindo questões que empresas e cidadãos do Brasil, além da Argentina, do Chile, do Paraguai e do Uruguai, estarão obrigados a respeitar, tendo em vista a aplicação uniforme, para todos, do direito comunitário, de sua interpretação e sua unificação jurisprudencial.
No Guarujá se especificou que a criação do tribunal supranacional terá, entre outras, a finalidade de interpretar e aplicar as normas adotadas pelos órgãos decisórios do Mercosul e, quanto a este, realizar o controle da legalidade de seus instrumentos e dos atos praticados.
Tais avanços são possíveis em face do direito constitucional brasileiro? A resposta, neste segundo semestre de 1996, ainda é negativa. Ao menos para o Brasil, a Carta de 1988 contém normas incompatíveis com a admissão de julgamentos proferidos em juízos estrangeiros. Em matéria de direito privado, é frequente, porém, encontrarmos contratos em que as partes escolhem, para julgamento de suas dissidências, juízes, cortes e árbitros de outros países, em solução inconfundível com o reconhecimento, pelo Brasil, da preponderância desses juízos.
Para viabilizar a aceitação de decisões judiciais comunitárias, será necessário rever a Constituição do Brasil. O exercício jurisdicional, que é o poder de julgar atribuído ao Judiciário brasileiro, deriva da própria soberania. Somente através da alteração constitucional se admitirá a outorga de uma parte de tal soberania ao corpo de julgadores comunitários, que, embora estrangeiros em maioria, terão direito de determinar regras impositivas no território do Brasil e no dos outros países vinculados às mesmas regras.
A solução supranacional, defendida no Guarujá e em Ouro Preto, onde falaram conceituados estudiosos do Velho Mundo, é muito utilizada na Comunidade Européia. Portugal teve de se adaptar a ela, mudando sua constituição, antes de ser recebido no Mercado Comum Europeu.
O exemplo português é útil para quem queira inteirar-se do que está acontecendo por aqui. Sei que esses temas são difíceis de entender, para o leitor alheio às peculiaridades do direito. Contudo, ele é tão importante para a vida nacional, que faz nascer o dever inafastável de tentar esclarecê-lo.

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