São Paulo, sexta-feira, 3 de janeiro de 1997
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Erro de Juscelino foi não ter apoiado Dutra

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Estava ausente da minha sala, a secretária anotou o nome e o telefone da Shirley, dei o retorno, o Clóvis Rossi atendeu, agora era a Shirley que não estava, ele se ofereceu para qualquer coisa que eu precisasse. Aproveitei o acaso (que alguns chamam de ensejo) e desabafei. Já disse e repito: se há alguém que trama contra o leite das minhas crianças e contra a minha estabilidade no emprego, esse alguém é, separadamente, e às vezes, juntos, a dupla Clóvis Rossi e Janio de Freitas, gente aqui da casa.
Não há semana em que, selecionando um assunto ou um ponto de vista, e deixando-o para o dia seguinte, abro o jornal e pronto, lá estão o Clóvis ou o Janio tirando o pão da minha boca, numa insensibilidade de madrasta da Branca de Neve contra o baixo clero do borralho -onde a duras penas sobrevivo ou pelo menos tento sobreviver.
Deu-se que naquele dia o Clóvis achou que FHC era, ou melhor, tem sido o melhor presidente do Brasil nesta segunda metade de século 20. Foi mole para ele atravessar a maioria de nossos mandatários, molíssimo em sequer mencionar os cinco generais-presidentes, mas embatucou um pouco ao chegar a Juscelino. Afinal, JK é tido e havido como símbolo de uma era e o próprio FHC, desde a sua campanha eleitoral, promete ou ameaça ser um novo JK.
O argumento que Clóvis usou para desclassificar o responsável pela nossa arrancada desenvolvimentista foi o fato de JK não ter conseguido fazer o seu sucessor. Como foi este, no estreito espaço de uma coluna, o seu único argumento -pelo menos a mim deu a impressão de colocar esse detalhe político como referência maior para o julgamento histórico de um presidente da República.
JK foi um péssimo político -disse isso diversas vezes, inclusive a ele, JK, nos seis anos em que trabalhei a seu lado, ajudando-o na redação de suas memórias. Cometeu erros dramáticos, como o de votar em Castelo Branco no Congresso, acreditando na promessa do general de manter o calendário eleitoral. Tancredo Neves alertou-o mas JK preferiu acreditar no que lhe convinha -e dançou. O candidato que ele devia apoiar, depois do movimento militar de 64, seria Dutra, homem do seu partido, ex-presidente, sem mais ambição na vida pública, insuspeito em matéria de comunismo ou corrupção, com autoridade patriarcal nas casernas e nas passeatas com Deus e pela Família.
Dutra presidiria ao hiato constitucional e, consultando o "livrinho" que sempre trazia no bolso, cumpriria o tal calendário eleitoral. Teríamos JK e Carlos Lacerda na disputa. Olhando hoje com perspectiva histórica o que seria essa eleição de 1965, descobrimos tardiamente que estávamos bem servidos. Nunca mais repetiríamos uma eleição presidencial com dois candidatos assim.
Poderia encher a página com exemplos de que JK foi péssimo político, a ponto de ser duramente castigado "a posteriori". Ele não estava nas primeiras listas de cassação, o caso dele foi à parte. Evidente que também não fez o sucessor, nem tinha interesse pessoal nisso, uma vez que seu candidato seria Juracy Magalhães (da UDN) ou Amaral Peixoto (do PSD), nunca o general Lott -que não era de nenhum partido e foi a maior mala eleitoral desde que os gregos inventaram essa mania de consultar o povo para saber quem vai para o trono.
JK consagrou-se como o presidente mais dinâmico, mais mobilizador das energias nacionais e, de quebra, tornou-se o logotipo de uma era de euforia que merecidamente tem o seu nome. Vargas sim, pode ser considerado o maior político de nossa história. No caso dele é até facultativo adotar o critério do Clóvis Rossi. Vargas, que não apreciava ser sucedido, conseguiu fazer sucessores de forma genial: deposto e exilado em 1945, elegeu Dutra em 1946. Morto em 1954, elegeu JK em 1955. Vá ser político assim no diabo.
Há ainda a considerar, no caso de JK, a peculiaridade dos critérios no momento de uma votação. O povo votou num desconhecido (Collor) e num demagogo primário (Jânio Quadros). Na sucessão de JK, em 1960, Jânio tornou-se imbatível comendo sanduíches durante os comícios, tomando injeções nas farmácias das favelas, prometendo vencer o milhão com o tostão. Foi -apenas e bastantemente- um fenômeno de massa, de comunicação, um Chacrinha estupendamente dotado para conquistar auditórios jogando bacalhau para a platéia. No poder, nem deu para a saída.
Jânio venceu Lott -até o Agnaldo Timóteo também venceria. Para a maioria do povo brasileiro, JK não estava em questão. Ao contrário de alguém que conhecemos, ele se recusara a patrocinar a emenda que lhe foi sugerida propondo a reeleição. Juracy Magalhães, eleitor de Jânio, ao ver JK despedir-se de Brasília depois de empossar o seu sucessor disse uma frase que resume o clima da época: "Esse governo está tendo um ocaso que parece uma alvorada".

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