São Paulo, sexta-feira, 3 de janeiro de 1997
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CPMF, a história real

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

Na tarde de 9/7 o governo decidiu adiar a votação da CPMF, pois, em ausculta realizada, contaria apenas com 200 votos a favor. Os líderes se reuniram com o presidente, estudaram um acordo, e, no dia seguinte, a CPMF foi aprovada por 326 votos contra 144 (portanto, com razoável margem de segurança).
Essa vitória deu R$ 6 bilhões/ano a mais para o sistema de saúde brasileiro, ou seja, cerca de 50% de aumento de recursos para a área. Foi uma conquista quantitativa e financeira considerável.
Entretanto, de maior importância foi o acordo na negociação entre os dias 9 e 10. Com ele, incorporou-se na proposta o compromisso -endossado por ministro, presidente da República e líderes do governo- de utilizar esses recursos exclusivamente nas unidades públicas de saúde e nas filantrópicas que atendem pelo menos 50% dos seus pacientes em convênio com o SUS, ou seja, que não são particulares nem têm qualquer tipo de plano de saúde.
Essa proposta, por mim apresentada pessoalmente para o PMDB e no plenário, por meio de um destaque para votação em separado, e também defendida pessoalmente pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, prevê a colocação deste pressuposto na lei que regulamentará a proposta de emenda.
Esse acordo fez com que 150 deputados mudassem de opinião do dia 9 para o dia 10. E por quê? Porque todos nós sabemos que 30% dos recursos do Ministério da Saúde estão sendo utilizados para financiar clínicas particulares lucrativas, terceirizando serviços que não atendem e que, quando o fazem, pecam na qualidade. Os exemplos de Caruaru e Santa Genoveva estão vivos na memória de todos os brasileiros e dos deputados que os representam.
Esses 150 parlamentares que mudaram o seu voto sabem também que a crise da vacinação em Campinas, provocada por uma falha de fabricação no tradicional Instituto de Manguinhos, decorre do sucateamento da área pública de saúde, pela terceirização fraudulenta, que lhe suprime recursos, e pela falta de um gerenciamento adequado e descentralizado dos estabelecimentos públicos.
Esse sucateamento não termina nem começa em Manguinhos. Ele passa por quase todos os hospitais públicos brasileiros, que estão atendendo com uma ociosidade de mais de 50%, com equipamentos mal conservados e com os recursos humanos -que constituem o principal elemento na área da saúde- remunerando abaixo de um padrão mínimo de dignidade.
Trata-se de um círculo vicioso que trouxe à saúde o caos e a está levando a uma tragédia total. Há poucas semanas fechou o Hospital das Clínicas da Universidade do Ceará, em Fortaleza, e, na Maternidade Assis Chateaubriand, pública e universitária, faleceram dezenas de crianças no berçário.
Os governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso praticamente dobraram os recursos do Ministério da Saúde entre 1992 a 1995, e ninguém pode negar, em sã consciência, que, apesar disso, ela piorou. Ela receberá agora, a partir de 1997, mais um aumento de 50% de recursos, que será um desperdício criminoso se não ocorrer rapidamente a recuperação da área pública e de sua eficiência gerencial.
O grande desafio para a saúde brasileira é exatamente acabar com a terceirização fraudulenta, limitando-a ao que é absolutamente necessário e sério, e gerenciar corretamente os estabelecimentos públicos, por meio da descentralização administrativa correta e rapidamente realizada. Essas duas medidas demandam coragem, porque deslocam interesses que não são pequenos e ficarão maiores com a CPMF.
A Câmara teve o destemor de assumir a atitude antipática de aprovar mais um imposto, às vésperas de eleições, e que vai atingir em cheio a classe média, já fortemente sacrificada pelo Plano Real; teve também a prudência de exigir o compromisso expresso do Executivo de aplicar integralmente esses recursos nas unidades públicas de saúde. Mas, com isso, adquiriu força para cobrar do Ministério da Saúde a coragem necessária para drenar os abcessos do sistema, a fim de que o brasileiro comece a ter o direito à saúde que lhe é garantido pela Constituição (que a Câmara aprovou e defendeu, rejeitando a PEC 32-A), por meio de um sistema público que funcione de forma competente, ética e acima de tudo, humana.

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