São Paulo, sexta-feira, 3 de janeiro de 1997
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Política educacional e mensalidades

IVAN VALENTE

Em depoimentos perante as comissões permanentes de educação e de defesa do consumidor da Câmara dos Deputados, o ministro da Educação, Paulo Renato Souza, e o secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, Bolivar Moura Rocha, adotaram a linha de negar suas bombásticas declarações à imprensa, sobre o modo como compreendem a educação e sua política em relação a ela, por ocasião da 29ª reedição da medida provisória nº 1.477. Particularmente o fato de tratarem a questão das mensalidades, da inadimplência e da permanência de alunos na escola como um contrato meramente comercial e não uma questão educacional.
Apesar disso, o ministro sustentou que o Estado tem que sair da regulação da relação entre escolas privadas e pais e alunos, para, supostamente, concentrar-se no atendimento aos que não podem pagar escola privada. Segundo ele, a classe média está em condições de enfrentar, por meio da negociação, o conflito com os donos de escola.
Diz o ministro: "A sociedade civil já está bastante organizada e em condições de tratar as questões relativas à escola, inclusive as mensalidades, em igualdade de condições com os estabelecimentos particulares de ensino".
A partir de tais declarações, a sociedade pode perceber melhor por que o governo transferiu do Ministério da Educação para o da Fazenda a competência para tratar do problema das mensalidades escolares.
O Executivo demonstra entender que o ato de um pai matricular um filho numa escola particular é o mesmo que alugar um filme numa locadora, por exemplo: é simples atividade mercantil, que, supostamente, deve ser regulada pelas "sacrossantas leis do mercado".
O comportamento das autoridades em relação ao ensino privado é coerente com uma política que encara a questão educacional como parte de um projeto que reserva ao país, na era da globalização, o papel de reprodutor do conhecimento e do "know-how" provido pelas grandes corporações multinacionais, conforme se depreende das declarações do ministro Paulo Renato à revista "Exame" (17/7/96).
Obviamente, o problema é que, hoje, ponderáveis parcelas das crianças, dos adolescentes e dos jovens brasileiros encontram-se matriculados na rede privada, mercê de décadas de desmonte e desmoralização do ensino público. Especialmente as classes médias vão às escolas privadas em busca de uma qualidade que a maioria delas não oferece, a despeito da propaganda.
Nessa medida, equivocam-se os que sustentam que pais e alunos optam por tais instituições, tal como a escola econômica neoclássica compreende a ação dos consumidores no mercado. Bem ao contrário disso, essas camadas são empurradas para os estabelecimentos particulares. Daí que, pelo mérito e pelo contingente populacional envolvido, o ensino particular e as mensalidades escolares são inequivocamente uma problemática de natureza pública. Não havendo, portanto, como dispensar a intervenção do Estado.
E não se diga que se quer atribuir aos cidadãos alguma espécie de minoridade para tratar dos seus assuntos privados. Ocorre que, por um lado, os proprietários das escolas privadas construíram um dos mais ativos cartéis que funcionam em nossa sociedade. O seu poder pode ser verificado no fato de que o aumento das mensalidades tem sido, com ou sem estabilidade monetária, sempre muito superior aos índices de inflação, bem como na enorme influência que exercem no governo e mesmo em certas decisões judiciais.
Por outro lado, a permanência ou não de um jovem numa escola está longe de ser um problema comercial. Está profundamente relacionado com o desenvolvimento afetivo, emocional e cognitivo dos alunos. Noutras palavras, não se troca de escola como se troca de marca de sapato.
O governo, porém, compreende as coisas noutra direção. Estranhamente, no tocante à cobrança das mensalidades, assume o ponto de vista das escolas, tratando-a como simples "questão comercial". No que diz respeito à inadimplência, indicando que -não fosse a pressão social, advogaria a supressão do artigo 6º da MP supra- concorda com as inaceitáveis chantagens das escolas (suspensão de provas, retenção de transferência etc.), tratadas eufemisticamente como punições pedagógicas.
Mas o secretário de Acompanhamento Econômico vai mais longe e fixa o diagnóstico de que os atrasos de pagamento não derivam, em sua maioria, de incapacidade dos orçamentos familiares para acompanhar os abusivos aumentos, mas de opção de pais e de alunos. Segundo esse juízo, chegaríamos ao absurdo de acreditar que os pais submetem seus filhos ou a si mesmos aos constrangimentos impostos pelas escolas apenas por "malandragem" ou, conforme certos dogmas, por optarem por especular com o dinheiro das mensalidades não pagas.
Note-se que tais constrangimentos são violentos. Uma demonstração de como as escolas tratam essa questão foi a decisão da Confenem (Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino) de colocar os nomes dos inadimplentes na Internet (Folha, 19/10/96).
Frente a essa clara ameaça de violação da privacidade dos cidadãos, cabe representação ao Ministério Público, como já fizemos, para que se provoque a Justiça, a fim de que esta ponha um freio nessa dinâmica do capitalismo selvagem na educação. Ademais, é de esperar que pais e alunos mobilizem-se contra os constrangimentos morais que escolas realizam com a conivência ativa das autoridades.

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