São Paulo, domingo, 5 de janeiro de 1997
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As filas de Campinas foram uma aula; O bispo Gaillot driblou o Papa pela Internet; A privatização da Embratel pode virar cartório; Tudo é possível; Real do Tchan; Urubu abatido; Mais um mês; EREMILDO, O IDIOTA; História militar

ELIO GASPARI

As filas de Campinas foram uma aula
A primeira novidade do ano chegou disfarçada. Descobriram-se as filas das escolas de Campinas. São filas que se medem pelo tempo que duram, não pela quantidade de pessoas que juntam. Uma, na frente da escola Vicente Rao (na montagem), neste ano durou seis dias e cinco noites. Outra, a da Castello Branco, quatro dias e três noites.
Nos dois casos, quem lá esteve virou o ano na rua. Somavam perto de 200 famílias, revezando-se à espera da manhã de quinta-feira, quando abriram-se (e fecharam-se) as matrículas. Não foi a primeira vez que isso aconteceu e tomara que não seja a última.
Uma coisa desse tipo sugere duas rápidas conclusões:
1) Faltam vagas nas escolas. O desmanche social chegou ao ponto de não haver mais lugar para as crianças no colégio.
2) A classe média está estrangulada. Sem poder pagar as mensalidades das escolas privadas, faz fila em porta de escola pública.
Não é por aí. As filas de Campinas informam que a classe média das grandes cidades brasileiras está desistindo do seu projeto de separação social. Faz isso porque lhe faltam recursos para sustentá-lo, mas também porque algum dia esse projeto haveria de demonstrar sua inviabilidade.
Essa classe média se protegeu das encrencas sociais do país montando um projeto de auto-suficiência: filho na escola privada, saúde no convênio e segurança na portaria. Hoje um projeto desse tipo custa a um casal com dois filhos pelo menos R$ 700 por mês (cada mensalidade a R$ 300, o plano de saúde a R$ 100, sem contar o condomínio). Ela não está estrangulada. Simplesmente não consegue pagar duas vezes pela educação e pela saúde. Paga a primeira vez quando deixa quase 20% de seus rendimentos na mão do governo. Outra, ao ter que comprar no mercado o que deveria receber de graça. As classes médias americana e européia simplesmente não resistiriam a uma tunga social desse tipo.
As duas escolas das filas de Campinas tem 2.200 alunos, ficam em bairros afluentes, são bonitas, têm boa qualidade de ensino e ofereciam um pouco mais de 200 vagas. Um casal que tenha ficado 120 horas na fila livrou-se de uma tunga de pelo menos R$ 3.600. Ganhou R$ 30 por hora, o que não chega a ser um Proer, mas é bom negócio.
As filas não refletiram uma falta de vagas nas escolas públicas. Refletiram a falta de vagas de boa qualidade. É possível que metade dos interessados já dispusesse de matrículas na rede estadual, que é inferior à da prefeitura da cidade. (A cidade de Campinas paga melhor aos seus professores que o Estado de São Paulo.)
Foi a classe média dos anos 40 e 50 quem forçou a expansão do ensino público de segundo grau. Essa mesma classe média, nos anos 70, forçou a abertura do sistema universitário, com as memoráveis campanhas dos chamados "excedentes". Se ela for à luta, recriará o ensino básico.
Ir para a fila é a forma mais primitiva dessa batalha. Negar o voto a prefeitos e governadores que enganam a população com turnos escolares de três horas já é coisa mais sofisticada. Respeitar os funcionários públicos que dão educação à garotada pode significar o começo de uma longa amizade com professores que só produzem escolas como as de Campinas porque trabalham a sério.
Outra boa idéia é coçar-se, contribuindo de alguma maneira para que a escola gratuita possa melhorar com pouco dinheiro.
E agora vem a má notícia. As escolas municipais de Campinas pedem aos pais que contribuam (se quiserem) com R$ 5 por mês. Menos da metade quer. Ainda assim, com a ajuda recebida, a Vicente Rao construiu um galpão para o lanche e uma cobertura para a entrada. Já a Castello Branco comprou televisão e copiadora.

O bispo Gaillot driblou o Papa pela Internet
Deu-se mal o Papa. Em 1994 ele resolveu se livrar do bispo Jacques Gaillot, da cidade francesa de Evreux. Demitiu-o, transferindo-o para a Diocese de Partênia. Desde o século 6 a localidade de Partênia, no sopé dos Montes Atlas, no norte da África, está coberta pela areia do Saara.
Gaillot, um defensor dos imigrantes ilegais africanos e dos miseráveis de todos os credos, foi mandado para uma diocese virtual. O Vaticano tem inúmeras dioceses desse tipo e as usa para assegurar o título de bispo a sacerdotes que vão trabalhar em postos importantes na Santa Sé. D. Sebastiano Baggio, quando saiu da Nunciatura no Brasil, em 1969, ganhou uma dessas dioceses e, vivendo em Roma, se tornou um dos cardeais mais poderosos da Cúria.
No caso de Gaillot, a diocese era virtual mesmo, porque tiraram-lhe Evreux, Partênia não existe e nada mais lhe deram. Pois foi exatamente bispo virtual que Gaillot se tornou. Há exatamente um ano, abriu uma página na Internet (http://www.partenia.fr) e está pregando para um público maior que o de Evreux. Na Itália, católicos descontentes com o cardeal de Nápoles criaram uma Sociedade Partênia e estão enchendo a caixa postal do Cardeal Bernardin Gantin, prefeito da Congregação dos Bispos, com cartões postais que informam: "Quero lhe informar que a partir de hoje pertenço à Diocese de Partênia, e monsenhor Gaillot é meu bispo."
Agora a diocese virtual, com versões em inglês, francês e alemão, acaba de abrir um guia com os endereços de organizações de defesa dos direitos humanos de todo o mundo.

A privatização da Embratel pode virar cartório
Ou o ministro Sérgio Motta se cuida, ou a privatização da Embratel acaba no pior dos mundos, transferindo-se um monopólio estatal para um buquezinho de monopólios privados.
Hoje a Embratel é dona do cartório de ligações internacionais, presta um serviço ora razoável, ora sofrível, e cobra preços altos. Só não consegue cobrar tarifas escorchantes porque uma santa concorrência internacional lhe corta as asas.
Se a empresa for privatizada dentro do puro espírito do mercado, numa base de "liberou-geral", o governo pouco embolsará, mas o consumidor será beneficiado por uma guerra de tarifas. Coisa semelhante aconteceu no Chile com o mercado de celulares, e as tarifas se tornaram as mais baratas do mundo. (É verdade que se deu uma quebradeira de empresas, mas não se deu quebradeira de usuários, muito menos uma "telerjização" dos serviços.)
Criados os telecartórios, cada um deles poderá render alguns milhões de dólares ao governo, mas concorrência que é bom, nada. Essa linha de raciocínio, que defende a proteção do investimento dos eventuais compradores, está correndo por trás das cortinas dos consultores do Ministério das Comunicações.
O que torna o mercado de comunicações internacionais divertido é o fato de não proteger investimentos. Trata-se de área em que ninguém sabe qual será o próximo avanço tecnológico, nem qual novidade vai virar sucata.
Se o governo quer privatizar a Embratel para melhorar serviços e baixar custos, o melhor caminho é a liberação do mercado de comunicações internacionais. Assim foi feito nos Estados Unidos, e não há notícia de que tenha dado errado. O cidadão escolhe o serviço de ligações internacionais com que quer trabalhar, disca um prefixo e acabou-se. As empresas que se comam umas às outras, oferecendo descontos aos seus clientes.
Se a intenção de Sérgio Motta é fazer caixa para o governo, os telecartórios são a melhor idéia, mas nesse caso seria injusto continuar falando em defesa do interesse do consumidor.

Tudo é possível
Na eventualidade de uma aproximação extrema entre o presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-prefeito Paulo Maluf, haveria até mesmo a possibilidade de ele aceitar um cargo no governo federal.
O comando da política de comércio internacional seria um bom início e fim de conversa.
Uma costura desse tipo precisa de quilômetros de linha.

Real do Tchan
Mais uma jóia para a coroa da estabilização da moeda. Apesar de muitas teorias, ainda não apareceu uma explicação para três êxitos recentes e sucessivos do mundo musical: os Mamonas Assassinas, Tiririca e, agora, o Gerasamba. Todos venderam mais de 1 milhão de discos em poucos meses.
É provável que o sucesso desse gênero, em que se misturam vulgaridade e bom humor, seja um reflexo do aparecimento de algumas centenas de milhares de novos consumidores de discos. O real do frango e do iogurte pode também ter alavancado o Tchan.
Só em dezembro, as vendas de bens de consumo durável (estatística onde moram os aparelhos de som) cresceram em 10%.

Urubu abatido
Se o secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, não tivesse pontaria, a liderança da bancada ruralista teria enfiado no projeto do Imposto Territorial Rural um artigo isentando de pagamento de imposto de renda os maganos que tivessem ganhos de capital com venda de terras.
O artigo estava prontinho. Se passasse, beneficiaria qualquer propriedade rural vendida a partir de quarta-feira passada.
Maciel abateu o urubu em vôo.

Mais um mês
Se a emenda da reeleição for cozinhada no Congresso até a primeira quinzena de abril, FFHH não se inquietará.
Já viu a conta em que está prevista a hipótese de um novo atraso.

EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota. Acredita que, com a reeleição e as promessas do ministro Antonio Kandir, FFHH entrará no seu Segundo Reinado com 110% de índice de popularidade.
Ele acha que resolveu o enigma da lista dos deputados do PPB que tinham conta no Banco do Brasil. Soube que o secretário-geral da Presidência, Eduardo Jorge, é também o coordenador de "ações de inteligência" do Palácio do Planalto. Como o caso resultou em burrice, a culpa não pode ter sido dele.

História militar
O Estado-Maior do Exército acaba de publicar um daqueles livros que ninguém lê, mas faz a festa dos pesquisadores. São 622 páginas de documentos internos, alguns deles mantidos em segredo nos arquivos até bem pouco tempo, quase todos inéditos em livro. Vão de 1896 a 1995, mas a partir dos anos 60 a seleção ganha em astúcia política e perde na qualidade da memória.
Mesmo assim, divulga boa parte do plano de reorganização do Exército de 1973, quando suas quatro divisões de infantaria foram inteiramente remanejadas por meio de um decreto secreto (até hoje).
Intitulado Documentos Históricos do Estado-Maior do Exército, certamente se transformará numa das melhores e mais acessíveis fontes de estudo da história militar brasileira.

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