São Paulo, domingo, 5 de janeiro de 1997
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O mito da política industrial

ROBERTO CAMPOS

"A melhor política industrial é ambiental: desregulamentar monopólios, simplificar o fisco e reduzir o 'o custo Brasil'." Embaixador Oscar Lorenzo Fernandes

Sinto frio na espinha todas as vezes que ouço falar na necessidade de termos uma "política industrial". Acredito no que dizia o velho presidente Reagan, que Nelson Rodrigues certamente definiria como um "falso idiota": "A melhor política industrial para os Estados Unidos é não ter uma política industrial". (A agudeza profética de Reagan tem sido aliás subestimada. Conta-se que, em seus dias finais de governador da Califórnia, respondeu a um jornalista que falava do "decadentismo" americano e da eventual supremacia industrial japonesa: "Não há perigo. A razão é que os Estados Unidos estão cheios de japoneses, e o Japão, vazio de americanos" (exceto os soldados que ganham soldo e não produzem nada).
Acreditar no governo "motor de desenvolvimento e benfeitor social" foi uma das minhas doenças da juventude. Tive várias. Escapei da gonorréia, só fabriquei dois poemas, superei breve ataque de socialismo romântico, mas caí na boçalidade de achar que o governo devia "planejar" a industrialização do país. Baseava-me em duas premissas, ambas falsas. A primeira é que só o governo pode pensar no depois de amanhã, pois, sob ameaças à sobrevivência, a empresa privada só se preocupa com o amanhã. A segunda é que o governo é uma bacia de acumulação de recursos investíveis, podendo correr o risco de grandes projetos.
Hoje penso exatamente o contrário. Os governos só pensam no curto prazo do mandato. Refazem ou desfazem os planos dos antecessores, preocupando-se mais com a próxima eleição do que com a próxima geração. A empresa privada, precisamente porque tem de garantir sua sobrevivência, é que planeja a longo prazo. E os governos não são bacias de acumulação de recursos; despoupam ao invés de poupar e são peneiras por onde vazam desperdícios. Peneiras e bacias só se parecem na forma circular. A falência financeira dos Estados é um fenômeno mundial. No Brasil, os governos não podem mais construir a infra-estrutura. Cabe ao leitor privado reconstruí-la.
Os que recomendam uma "política industrial" ativista laboram no equívoco de que o buro-tecnocrata e não o empresário é o grande "descobridor de oportunidades". Os liberais austríacos pensam exatamente o contrário. A essência da vida empresarial é a aceitação do risco e a busca de oportunidades. A essência da burocracia é o gozo do monopólio e a distribuição dos recursos alheios. E, não correndo risco, não é obrigada a processar a massa de informações de que o empresário necessita para sobreviver no mercado.
Os entusiastas da política industrial têm uma qualidade em comum com os políticos e os amantes: o esquecimento das experiências passadas. Relembremos alguns desastres de política industrial, concentrados sobretudo no período Geisel, que foi o apogeu do intervencionismo industrial: o programa nuclear com a Alemanha, a política de informática e a substituição forçada de bens de equipamento pela produção local. Passados 21 anos, nenhum só quilowatt foi gerado sob o acordo nuclear de 1975. O domínio do ciclo completo do processamento de urânio foi interrompido por falta de verbas. Sobrevive o programa nuclear da Marinha, que, coitada, não só carece de verbas como ainda não encontrou inimigos credíveis para seu submarino nuclear. Num momento de paranóia, compramos a Nuclep, uma fábrica especializada em reatores nucleares, como se houvesse um mercado regular para esses perigosos monstrengos.
Num outro exemplo de política industrial, plantamos a árvore às avessas, enterrando galhos e folhas e deixando no ar as raízes. É o caso da política de informática: as raízes seriam o software, a importação maciça de hardware para criar mercado e a microeletrônica. A difusão do uso do computador era muito mais importante que a produção local de computadores. Concentramo-nos entretanto nesse último aspecto, restringindo importações e vedando o ingresso de investidores estrangeiros. O resultado foram altos custos de produção, mercado comprimido e próspero contrabando.
Vetamos os projetos de dois gigantes da microeletrônica, a Texas Instruments e a Motorola, e garantimos reserva de mercado para três empresas locais, nenhuma das quais ultrapassou a puberdade na microeletrônica. E perdemos a corrida para países que antes inexistiam na paisagem informática e que hoje têm expressão maior que nós no comércio internacional de alta tecnologia: Taiwan, Coréia, Cingapura, Tailândia, Malásia e até mesmo as Filipinas.
Como nossa memória é curta, parece que o Itamaraty e o Ministério da Indústria, Comércio e Turismo estão ocupadíssimos preparando nosso próximo erro: recusar a adesão do Brasil ao recente Acordo de Cingapura para liberalização do comércio internacional de alta tecnologia até o ano 2000. Será um segundo suicídio tecnológico. Países que representam 85% do comércio mundial desses produtos já aderiram, e o acordo entrará em vigor quando se atingir, em breve, o patamar de 90%. Se insistirmos em manter tarifas obscenas de mais de 30% sobre a importação de bens de informática, para sustentar indústrias parasitárias, ficaremos atrasados na batalha da produtividade e aumentaremos a atratividade de competidores mais liberais para os investidores em tecnologia de ponta.
O terceiro exemplo de política industrial mal direcionada foram os exagerados subsídios à indústria de máquinas e ferramentas, acopladas a restrições de importação. Racionalmente, num programa de industrialização substitutiva de importações, as máquinas e equipamentos seriam os últimos itens da agenda, simplesmente porque são indispensáveis à atualização tecnológica, além de trazer embutidos generosos financiamentos. Estimular artificialmente sua produção local é encarecer os custos de toda a indústria de transformação, com perigo de desatualização tecnológica e elevados custos financeiros para os compradores. Não mais que duas ou três empresas lograram se estruturar sólida e competitivamente, ficando as demais devedoras insolventes do BNDES.
O embaixador Lorenzo Fernandes tem toda a razão ao dizer que a melhor política industrial é a ambiental: o governo deve criar um ambiente propício à industrialização, sem ditar-lhe rumos. Isso significa essencialmente abolir monopólios e reservas de mercado, simplificar o fisco e a legislação trabalhista e aplicar os recursos da privatização na redução da dívida pública para abater os juros asfixiantes do setor privado.
Há toda uma mitologia sobre o milagre dirigista de tecnocratas japoneses e coreanos, como heróis da industrialização. Trocadas as coisas em miúdo, como o fez recentemente o Banco Mundial, verifica-se que o MITI japonês errou mais do que acertou em seu dirigismo, e que as indústrias bem-sucedidas não foram as privilegiadas pelos tecnocratas, e sim as mais adequadas aos recursos humanos e materiais dos respectivos países. A explicação do sucesso se encontra muito mais na educação básica, no direcionamento adequado de crédito barato e na ênfase sobre exportações do que na descoberta de oportunidades por tecnocratas iluminados.

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