São Paulo, domingo, 5 de janeiro de 1997
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Aumentar o investimento; logo, a poupança

ROGÉRIO STUDART

A relação entre poupança e investimento é uma dessas questões pendentes na teoria macroeconômica desde a sua fundação, com a publicação da "Teoria Geral do Emprego, Juro e da Moeda", de John Maynard Keynes.
Fugindo ao senso comum vitoriano, que via na parcimônia individual a virtude necessária para a prosperidade das nações, Keynes defendeu ardentemente a idéia de que o investimento seria o determinante último da renda, precedendo logicamente a poupança agregada. Isso porque, como ressaltava Keynes, enquanto o gasto autônomo inevitavelmente gera renda, nada garante que a renda poupada (o "não gasto") por uma gente gere um investimento proporcional.
É com base no "argumento da poupança prévia", contra o qual Keynes se rebelou, que lemos hoje em artigos e editoriais na imprensa especializada que a solução de questões tão variadas quanto a expansão do déficit fiscal, o "boom" do consumo privado e do déficit da balança comercial e até mesmo a reforma da seguridade social é fundamental para o crescimento do investimento.
Tais questões são extremamente relevantes, o que não quer dizer que políticas voltadas para a solução desses problemas sejam suficientes, ou mesmo compatíveis, com a expansão do investimento. Vejamos.
Um superávit fiscal (poupança pública) reduz a demanda agregada, o que, por si só, não estimula o investimento privado -podendo mesmo desestimulá-lo. O equilíbrio fiscal é, entretanto, fundamental para restabelecer os graus de liberdade na implementação das políticas fiscal e monetária. Por sua vez, a política fiscal é importante instrumento anticíclico em qualquer economia e, em economias em desenvolvimento, possibilita a implementação de estratégias de crescimento de longo prazo. Por outro lado, na medida em que taxas de juros reais baixas são importantes mecanismos de estímulo ao investimento privado, ter graus de liberdade na determinação da política monetária pode ser fundamental para o crescimento.
Outra posição aparentemente falaciosa (também subproduto do argumento da poupança prévia) é a que justifica a reforma da seguridade social pela necessidade de redução do consumo e, portanto, o aumento da poupança privada.
De fato, o rápido aumento do consumo privado no Brasil nos últimos dois anos é preocupante, porque essa expansão da demanda acaba por gerar pressões inflacionárias e/ou pressões sobre nossa balança comercial, o que ameaça a sustentabilidade do atual plano de estabilização.
Mas a reforma da seguridade, por si só, não resolve o problema do aumento desenfreado do consumo privado, gerado pelo aumento da renda real de alguns setores e pela rápida expansão do crédito ao consumidor. Tampouco soluciona o problema da pouca elasticidade da oferta agregada e da falta de competitividade dos produtos nacionais -frutos de diversos anos de investimentos baixos e da acentuada valorização do Real. E pouco ou nada contribui para a expansão do investimento agregado.
A reforma da seguridade social se justifica no Brasil, assim como em outros países, porque a velha estrutura está falida e é incapaz de financiar aposentadorias dignas, e sua situação se agrava quando mais se precisa dela: nos períodos de expansão do desemprego e queda das contribuições.
Aliás, vale lembrar que no Chile, que virou moda nessa discussão, a principal causa do crescimento das contribuições ao sistema (ou da poupança dos trabalhadores) foi o aumento do produto, do emprego e dos salários, em vista do crescimento sustentado das exportações e do investimento.
A reforma da seguridade social chilena, entretanto, "democratizou" os benefícios do crescimento, na medida em que foi permitido aos fundos de pensão aplicarem em ações de empresas em rápido crescimento. Isso foi bom para os trabalhadores e bom para o investimento, já que as aplicações desses investidores institucionais são de longo prazo, e é de capitais de longo prazo que precisam as empresas para crescer.
Entre uma e outra falácia, evita-se a discussão séria sobre as políticas voltadas para a expansão sustentada do investimento, do emprego e do produto -logo, da poupança. Ao contrário do que é normalmente argumentado hoje em dia, não é a falta de poupança que impede o investimento no Brasil.
Vale a pena mencionar três fatores interrelacionados que claramente impedem a expansão do investimento: primeiramente, a falta de uma estratégia de desenvolvimento de longo prazo, que guie os "animal spirits" do empresariado. Em segundo lugar, a incerteza e o pessimismo das expectativas de longo prazo do setor privado ainda são muito altos, gerando poucos incentivos para expansão de capacidade produtiva. Por fim, o profundo desarranjo fiscal, gerado, entre outros fatores importantes, pela política de juros exorbitantes, torna pouco factível o crescimento do investimento público.
Por fim, a insistência em tratar a poupança como o limite financeiro (senão físico) ao investimento coloca os problemas estruturais do financiamento do desenvolvimento em segundo plano. Por exemplo, enquanto os sistemas financeiros nacional e internacional se tornam cada dia mais "curto-prazistas", os sistemas latino-americanos de financiamento de longo prazo (essencialmente públicos) estão claramente desestruturados depois de anos de crises e "reformas".
Não é surpreendente, por exemplo, que os bancos de desenvolvimento estaduais brasileiros sejam pouco mais que zumbis, e que hoje o BNDES financie desde hotéis-pousada até déficits de Estados.
Se não conseguirmos ultrapassar os preconceitos intelectuais oriundos da visão vitoriana das "virtudes da parcimônia", temo que seja extremamente complicada a superação desse "trade-off" perverso entre crescimento e equilíbrio externo que o governo impôs ao país. E, caso consigamos superá-lo, e voltemos a crescer com base em expansão de nossa capacidade produtiva, "upgranding" tecnológico e aumento da competitividade internacional, vamos perceber quão danosos foram esses anos de discussões falaciosas e "desmonte" das instituições tradicionais de financiamento do desenvolvimento.

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