São Paulo, domingo, 5 de janeiro de 1997
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O prazer da crítica

SAMUEL TITAN JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pátria de tantas versões do clássico e do neoclássico, a França não perde tempo quando se trata de elevar mais um de seus filhos ilustres à condição de grande autor. Em se tratando de artes plásticas, uma megaexposição em Paris é o meio mais usual e recomendado; no caso das letras, uma edição na Bibliothèque de la Pléiade costuma dar conta do recado.
A canonização é habitualmente rápida, salvo um ou outro caso aberrante; e, mesmo quando tarda, não falha. Os poetas malditos do século 19 e os prosadores libidinosos do 18 já podem ser lidos em papel-bíblia, entre capas de couro. No caso das recentes "Obras Completas" de Roland Barthes (1915-1980), mal se passaram 15 anos da morte trágica do autor, atropelado quando saía do Collège de France, para que as Éditions du Seuil lançasse à devoração pública três belíssimos volumes contendo todos os escritos do crítico entre 1942 e 1980.
O Mais! publica nesta edição quatro textos (inéditos no Brasil) retirados ao primeiro volume (1942-1967), que, entre outros atrativos, reúne pela primeira vez sua produção jornalística dos anos 50.
Razões não faltam para um lançamento tão ambicioso, que soma quase 5.000 páginas de texto. Um dos críticos literários mais influentes da segunda metade do século, Barthes tornou-se referência obrigatória até para os que discordam com veemência de suas opiniões e opções (José Guilherme Merquior via nele um dos responsáveis pela "teorréia literária" atual). Após debutar, quase aos 40 anos, com um brilhante libelo contra a instituição "burguesa" da literatura ("O Grau Zero da Escritura", 1953), ele percorreu nas três décadas seguintes um vasto espectro de posições críticas e teóricas: do envolvimento inicial com o teatro, passando por Brecht e o Nouveau Roman (textos reunidos em "Essais Critiques"), o marxismo e a semiologia ("Mitologias", 1957), a linguística e o estruturalismo (em "Sistema da Moda", no ensaio "Análise Estrutural da Narrativa" e sobretudo em "S/Z", de 1970), até chegar à produção largamente inclassificável dos 70 ("O Prazer do Texto", "Fragmentos de um Discurso Amoroso", "Roland Barthes por Roland Barthes").
É justamente a lepidez vertiginosa com que saltava de um barco para outro que deve tornar difícil sua metamorfose derradeira em grande clássico das letras francesas. Se Lévi-Strauss não parece incomodado com a farda da Academia, ela parece não cair tão bem em Barthes. O próprio Barthes renunciou a tal pretensão -mas, curiosamente, ele o fez de antemão, como se adivinhasse (ou secretamente esperasse?) a entronização vindoura. Claro está que, dados os modismos lítero-filosóficos em curso na França, não faltará quem reclame para si a herança legítima do grande crítico.
Mesmo assim, não será fácil reproduzir a peste semiológica dos anos 70, quando seu nome valia por um abre-te-sésamo em todos os departamentos de letras. Até porque as luzes da ribalta são faca de dois gumes: realçam o semblante ideal, mas tornam visíveis as rugas. No caso presente, a reunião de todos os escritos de Barthes permite ver o quanto de arbitrário havia em tantas afirmações peremptórias com vida útil de dois ou três anos, ou ainda quanto de tolamente sectário havia em certas escolhas (compare-se a liberdade de espírito e de estilo das "Mitologias" de 1957 com o esquematismo semiológico posterior).
Seja como for, estas "Obras Completas" oferecem o enorme prazer sinóptico de localizar, em textos e contextos díspares, o surgimento de idéias e formulações caras ao autor. Os dois primeiros textos que o Mais! publica nesta edição ("O Grande Robert", de 1954, e "Os Dois Salões", de 1959) são "mitologias", gênero de pequenos ensaios que Barthes praticou ao longo da década de 50. Unindo um temperamento de "flâneur" a uma certa dose de conceitos semióticos, somados por sua vez ao teorema marxista segundo o qual toda ideologia, mais do que ocultar, antes apresenta os fatos sociais relevantes travestidos de dados naturais, Barthes chegou a sínteses brilhantes de imagens do dia-a-dia, que formam em seu conjunto uma espécie de semiologia crítica da vida cotidiana.
Na sequência, o leitor encontra uma resenha tão refinada quanto estreita do grande romance de Camus, "A Peste" (feita para o "Boletim do Clube do Melhor Livro", em fevereiro de 1955), acompanhada da réplica do escritor e da tréplica bombástica (e um tantinho ridícula) de Barthes (publicadas na edição de abril do mesmo boletim). O romancista, que receberia o prêmio Nobel dois anos depois, já ocupava lugar importante no argumento de "O Grau Zero da Escritura", mas agora podemos também conferir as outras ocasiões em que Barthes se ocupou de Camus: uma de suas primeiras aparições impressas foi justamente uma "Reflexão Sobre o Estilo de 'O Estrangeiro' " (publicada em 1944 no jornal dos pacientes do sanatório de Saint-Hilaire-du-Touvet), cujas idéias reaparecerão, dez anos depois, no artigo "O Estrangeiro, Romance Solar" (1954).
Além de documentar o encontro de dois grande nomes da cultura francesa no pós-guerra e evocar o clima candente e algo sufocante em que se davam os debates de então, o exame desses textos talvez mostre que, feitas as contas, o melhor da argúcia crítica de Barthes pouco devia à moda, profissão de fé ou dogmatismo de plantão.

Onde encomendar:"Oeuvres Complètes", de Roland Barthes (Éditions du Seuil, 1996, em três volumes, preço médio de cada um: 350 francos), pode ser encomendado à Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, fundos, tel. 011/231-4555, São Paulo).

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