São Paulo, domingo, 5 de janeiro de 1997
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Uma doença chamada hipocrisia

GILBERTO DIMENSTEIN

Está prestes a ser divulgado um remédio capaz de debelar uma doença que ataca anualmente 300 milhões de pessoas no mundo, 600 mil só no Brasil. E mata muito mais do que a Aids.
A cura da malária vem sendo pesquisada pelo laboratório de doenças tropicais do Exército norte-americano, em Washington. As vacinas lançadas até agora não funcionam. Os remédios, no indivíduo infectado, perdem efeito; o parasita que provoca a malária está cada vez mais resistente.
Sem entrar em detalhes, os responsáveis pela pesquisa revelaram numa conferência no final do ano passado, nos EUA, que testes iniciais indicam resultados animadores. Segundo informações colhidas nos meios científicos americanos, o laboratório tem mesmo motivos para satisfação e vai ainda este mês mostrar os resultados.
Pergunta: apesar de os avanços na luta contra uma doença que mata 2 milhões de pessoas por ano terem sido apresentados numa conferência, você leu ou viu esta notícia em algum lugar?
Claro que não, mas não se culpe. Culpe a imprensa.
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Cada avanço contra a Aids é microscopicamente acompanhado e fiscalizado por governos, empresas e barulhentas organizações não-governamentais; as conferências sobre o assunto ficam abarrotadas de jornalistas.
Raro o dia em que não sai nada sobre Aids em qualquer jornal brasileiro. Imagine, então, aqui em Nova York, cidade que abriga a maior concentração de homossexuais do mundo. Não é por acaso que as descobertas que levaram à produção do coquetel de remédios contra a Aids, mais importante notícia científica do ano passado, tenham sido produzidas em Nova York.
É reflexo da pressão constante. Quando existe pressão existe dinheiro para pesquisa.
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Desde que apareceram os primeiros sinais da Aids, no começo da década de 80, morreram 11 milhões de pessoas. Os mesmos 11 milhões morreram como consequência da malária em pouco mais de cinco anos.
A diferença é que malária mata pobre. Está praticamente restrita, pela ordem, à África, Ásia e América Latina. No Brasil, limita-se à região amazônica.
A classe média em Manhattan, Rio, São Paulo, Londres ou Paris não pega malária. Os jornalistas, seus amigos, parentes e conhecidos não morrem disso.
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Raros exemplos ilustram melhor a indiferença diante da primeira manchete da Folha em 1997, informando que a tortura cresce nos distritos policiais. A reportagem é acompanhada de relatos escabrosos.
Nem de longe tem a repercussão de delitos administrativos como o caso dos funcionários fantasmas do PT ou propostas de suborno do Congresso.
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Durante o regime militar, dizíamos que nada poderia ser mais terrível e hediondo do que a tortura. Odiávamos com todas as nossas forças os militares que torturavam ou acobertavam os torturadores.
Acaba o regime militar, nossa pele está salva, mas a tortura continua nos distritos policiais. Sabemos disso, mas já não sentimos a mesma indignação. Sabemos que o extermínio é uma prática policial e, no entanto, a indignação de jornalistas, intelectuais e políticos progressistas é mínima se comparada à ojeriza que tínhamos quando esquadrões da morte atuavam na repressão política.
Dois pesos e duas medidas, numa hipocrisia que ajuda a perpetuar as doenças sociais, justamente porque deixa de produzir pressão na sociedade.
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Se a mídia continuar se omitindo, vão acabar apontando o dedo para nós assim como apontávamos para os alienados no regime militar, encantados com os "milagres econômicos".
Vamos reconhecer que, apesar de todos os avanços, a imprensa também é parte da cultura da exclusão social. Compreensível: reflete os anseios dos leitores. Ler jornal todos os dias, no Brasil, é critério suficiente para enquadrar alguém na categoria de classe média.
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PS - Reconhecimento: Há sinceros esforços de alguns governadores, entre eles Mário Covas, para que os policiais, servidores públicos, não se comportem como um bando de selvagens. Em São Paulo, por exemplo, policial que mata é imediatamente afastado. Abre-se inquérito, e, se absolvido, o policial volta a trabalhar.
A Anistia Internacional patrocina cursos de direitos humanos no Rio Grande do Sul e Bahia.
Recebo relatos, porém, de que no Rio a ordem é matar primeiro e perguntar depois. A população aceita e cala, na ilusão de que terá mais "segurança", na tese de que os fins justificam os meios, tão usada pelos ideólogos da segurança nacional.
Polícia só deve atirar em última instância. Comparem o número de feridos e mortos pelas polícias americana e brasileira, prova de que no Brasil existe uma aceitação tácita do extermínio.

Fax: (001-212) 873-1045

E-mail: gdimen@aol.com

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