São Paulo, domingo, 5 de janeiro de 1997
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Teoria democrática e reeleição

ALFRED STEPAN

Nenhuma democracia na Europa Ocidental ou na América do Norte proíbe seus chefes de governo de se reelegerem à própria sucessão pelo menos uma vez, por meio de eleições livres e pluripartidárias. Isso vale até mesmo para os países que sofreram períodos de ditadura no século 20, como a Alemanha sob Hitler, a Itália sob Mussolini, Portugal sob Salazar ou a Espanha sob Franco.
Há três sólidos princípios democráticos por trás dessa prática moderna e universalmente adotada na Europa Ocidental e América do Norte de permitir que os chefes de governo no poder concorram pelo menos por uma vez à reeleição.
Primeiro, uma decisão que esvazie o direito dos cidadãos de reeleger para imediato segundo mandato um chefe de governo é uma violação do princípio democrático de que os eleitores são livres para escolher quem melhor lhes aprouver como seus líderes.
O segundo sólido princípio democrático é que qualquer cidadão acima da idade mínima para o cargo que queira candidatar-se ao principal posto eletivo deve ter o direito de fazê-lo.
O terceiro sólido princípio democrático envolve a responsabilidade. Se o chefe de governo pode concorrer à reeleição, o princípio de sua responsabilidade perante os cidadãos vem imediatamente à tona. Os eleitores têm o poder de negar novo mandato a um chefe de governo que julgam não ter sido um líder efetivo, ou que acreditem não ser a melhor das opções dentre as que têm. Por outro lado, se os eleitores acreditam que o chefe de governo no poder, com base em seu desempenho passado, é o melhor candidato dentre os que se lhes apresentam, podem recompensar esse líder com a reeleição.
Leis que negam o direito a pelo menos um segundo mandato imediato debilitam o princípio da responsabilidade democrática perante os cidadãos e os incentivos para desempenho honesto e de alta qualidade no período final de um mandato de um governo.
Observemos como esses princípios democráticos funcionam na prática. Na Europa, com seus sistemas puramente parlamentaristas, não há, na verdade, qualquer limite ao número de vezes que um primeiro-ministro pode ser reeleito sucessivamente por uma coalizão (ou, caso extremamente raro, por um único partido) que tenha maioria no Parlamento. Mas um primeiro-ministro não tem mandato fixo e, assim que sofre um voto de desconfiança e/ou outro líder conquista maioria parlamentar, é forçado a renunciar.
Nos EUA, em parte porque o país adota um sistema presidencialista com eleições diretas e o ocupante da presidência tem um mandato rígido e fixo, e também porque o presidente, diferentemente de um primeiro-ministro, ocupa os cargos de chefe de Estado e chefe de governo a um só tempo, o limite é de dois mandatos sucessivos à frente do Executivo, desde os anos 40.
No entanto, em uma democracia como a dos EUA, o fato é que os presidentes frequentemente não são reeleitos. Controles, por exemplo, na forma de regulamentos explícitos sobre como os presidentes podem e não podem usar seu cargo para fins eleitorais, verificação agressiva do cumprimento desses estatutos por uma imprensa livre e a existência de numerosos candidatos com ambições à presidência dentro do partido do presidente que estiver no poder contribuem para esse desfecho.
De fato, dos últimos seis presidentes que poderiam concorrer à reeleição, só dois foram de fato eleitos para um segundo mandato. Os eleitores decidiram contra três deles (Ford, Carter e Bush), dois conquistaram um segundo mandato (Reagan e Clinton) e um, frente à perspectiva de séria concorrência nas eleições primárias de seu partido, decidiu não candidatar-se à reeleição (Johnson).
Em termos históricos, na Europa Ocidental e na América do Norte modernas, durante períodos de grandes mudanças e instabilidade, os eleitores, nos casos em que sentiram estar recebendo eficiente liderança democrática, exerceram seu direito legítimo de renovar o mandato dessa liderança.
A história teria sido diferente se os eleitores não tivessem o direito de manter seus líderes prediletos no poder por pelo menos um mandato adicional além dos quatro ou cinco anos iniciais.
Na Alemanha, Konrad Adenauer teria sido forçado a deixar o poder no começo dos anos 50, quando uma maciça força de ocupação estrangeira continuava presente em solo alemão, antes que o milagre econômico tivesse sido institucionalizado e num momento em que as pesquisas de opinião pública indicavam profunda ambivalência quanto à democracia.
Na França, Charles de Gaulle teria tido de deixar o poder antes que muitas das práticas que fazem a Constituição de 1958 realmente funcionar tivessem sido desenvolvidas, e enquanto ele ainda estava enfrentando a revolta militar contra a descolonização francesa na Argélia.
Por fim, nos EUA, se Franklin D. Roosevelt não pudesse ter sido reeleito em 1936, ele teria deixado o poder nos primeiros dias do "New Deal", antes que a economia norte-americana começasse sua longa e lenta recuperação, que permitiu que o país desempenhasse papel tão importante na 2ª Guerra.

Tradução de Paulo Migliacci

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